Artigos de Jornal
O mensalão como espetáculo
A universalização da TV e de outras mídias criou o que autores como Guy
Debord e Frederic Jameson chamaram de cultura do espetáculo, que domina a vida
politica, econômica, social e cultural do mundo. É preciso ter consciência
critica deste fenômeno. Por esta razão, a maioria dos juízes norte-americanos
não permite a entrada de câmeras fotográficas e vídeos nos tribunais para evitar
uma pré-condenação dos réus. O que estamos vendo no caso do mensalão é a
transformação de um julgamento do STF em um espetáculo televisivo que disputa o
ibope com o desnudamento da nossa classe média no lixão da Avenida Brasil. Não
falta inclusive um super-herói de capa e espada lutando contra as forças do mal
e a figura do bom ladrão arrependido. O juiz que não votar pela condenação dos
réus, independente da consistência das provas, corre o risco de ser considerado
conivente com a corrupção.
Para além da questão moral, há neste episódio uma questão politico-institucional
gravíssima. O nosso sistema politico é estruturalmente corrupto. Este fato
decorre do atual regime politico híbrido com uma Constituição parlamentarista,
onde tudo deve passar pelo Congresso, e um Presidencialismo onde o chefe de
estado, eleito por outra via, não tem o apoio do Legislativo. O conflito se
estabelece pela origem diversa dos poderes Legislativo e Executivo. Assim o
presidente reina, mas não governa, a menos que coopte uma base parlamentar
descompromissada e infiel.
Tal sistema foi instituído por Sarney ao vetar o parlamentarismo e restaurar a
figura do presidente absoluto, sem fazer as adaptações constitucionais
necessárias. Ao contrario do parlamentarismo autentico, em que o
primeiro-ministro é eleito pela coligação que lidera o parlamento, ou de um
presidencialismo bipartidário, como o norte-americano, onde o presidente é
eleito indiretamente por delegados dos partidos, o que garante certa unidade
entre o Legislativo e o Executivo, o nosso regime hibrido com 30 legendas de
aluguel é literalmente um mercado.
No nosso regime político bizarro, batizado por Sergio Abranches de
presidencialismo-de-coalizão, o chefe de estado para governar precisa do “toma
lá, dá cá”, que mão se faz só com reais e dólares, mas com cargos, liberação ou
retenção de emendas parlamentares e participações devidas, financiamentos de
obras etc, tidos como “normais”. Destas praticas, inclusive com compra de votos
em dinheiro, foram acusados os Presidentes Sarney, para prorrogar o seu mandato;
Fernando Henrique Cardoso, para instituir a reeleição e fazer privatizações
turvas, e Lula, para aprovar leis de seu programa político. Não vou julgar aqui
o mérito de tais ações, senão analisar as razões da pratica.
Nesse sistema, os verdadeiros operadores da governabilidade são os chefes da
casa civil e coordenadores políticos. As mesmas acusações que pesam sobre José
Dirceu e José Genoino de compra de votos sofreram Eduardo Jorge e Sergio Motta,
o Serjão, na administração de FHC. Mas Fernando foi mais vivo evitando uma CPI e
lavando as mãos ao criar o CGU. Aliás, o inventor do engenhoso Valerioduto é o
ex-governador de Minas Gerais, Eng. Eduardo Azeredo, fundador do PSDB.
Fica evidente que a compra de votos é resultado de uma crise estrutural de
governabilidade, que se manifesta também pelo abuso de Medidas Provisórias, que
só no Governo de FHC chegaram a 5.491. Nem mesmo a base governista renuncia a
cobrar pedágio e vantagens. No processo em julgamento do presente mensalão estão
arrolados políticos do PT, PP, PL, PTB e PSB. O comercio do voto continuará a
existir, enquanto persistir o regime politico atual. Quanto irá custar, de forma
explicita ou implícita, a votação das reformas que o País necessita? Se não
quisermos ver a reprise deste filme, devemos julgar e condenar o sistema
politico corruptor vigente. Tudo mais é circo. Mas tal reforma institucional só
pode ser feita por uma Constituinte independente do atual esquema
político-partidário, pois seus agentes não abrirão mão do cheque em branco que
têm hoje para negociar a governabilidade.
SSA: A Tarde, 14/10/2012