Artigos de Jornal


Senectude e encantamento

  • 01 de Setembro de 2024

Mês passado fui ver, com minha filha Renata, a peça Belchior, ano passado eu morri, mas este ano não morro, o musical. Coincidentemente no dia seguinte este jornal publicou dois artigos relacionados com o tema: Admirável Mundo Velho, de Raul Moreira e Mundo Digital: modo de Usar, do psicanalista Cláudio Carvalho.

O filósofo romano Cícero escreveu "De senectude: saber envelhecer" (44 aC) e aos 62 anos dizia que a velhice era uma dádiva “leve e fácil de suportar”. Para ele a velhice era sabedoria, era legado, e a morte “era a cena final da existência”. Se contemporâneo, diria como Guimarães Rosa que as pessoas não morrem, se encantam. Foi executado um ano depois por ordem do imperador Marco Antônio e teria dito a seu carrasco: “Não há nada de correto no que estás a fazer, soldado, mas tenta matar-me corretamente”.

O filósofo e jurista italiano Norberto Bobbio, aos 85 anos, não era tão otimista. Em O tempo da memória: De senectude e outros escritos autobiográficos (1996) afirmava “o tempo da velhice é o passado”, a “fraqueza do corpo” e “a morte é o fim absoluto do nosso eu”. Ao jornalista Raul Moreira, que o entrevistou em 1997, disse: “Estou louco. Cada vez mais trôpego, as pernas cada vez mais fracas, apoiado à bengala, amparado pela minha mulher”.

São dois ambientes muito diversos: o de Cícero e o de Bobbio. “A solidão é uma companhia cada vez mais presente e a história recente da humanidade parece presa a um paradoxo: vivemos aglomerados em cidades apinhadas de gente solitária. O sentimento de pertencimento a uma comunidade mais ampla vai progressivamente cedendo lugar a um individualismo agigantado, obeso e voraz no consumo da imagem de si mesmo” (Carvalho).

Para um outro filósofo, que como Cícero não cursou a academia, a velhice é inexorável, e precisamos lutar pela vida colorida para não envelhecer: “Você não sente, nem vê/ mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo/ que uma nova mudança em breve vai acontecer/ e o que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo/ e precisamos todos rejuvenescer [...] No presente, a mente, o corpo é diferente/ e o passado é uma roupa que não nos serve mais” (Velha roupa colorida).

O tema da morte e da esperança também está presente no pensamento deste filósofo que sofreu nas cidades grandes, de multidões solitárias: “Tenho sangrado demais/ tenho chorado pra cachorro/ ano passado eu morri/ mas esse ano eu não morro” (Sujeito de sorte). Entendo o seu desaparecimento em 2008, deixando bens, dívidas e processos judiciais. Empresários da mídia lhe ofereceram fazer shows para quitar suas dívidas e voltar a brilhar, mas ele não aceitou. O que Belchior não queria era envelhecer e preferiu se encantar artisticamente. Morreu pobre e ocultamente em 2017, mas deixando um legado de reflexões, como antigamente.


Últimos Artigos