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0 que contam as mãos

  • 27 de Outubro de 2024

De repente a internet virou um cassino, com o Jogo do Tigrinho e as Bets de apostas esportivas levando adolescentes e adultos a se endividarem absurdamente e famílias pobres gastando o dinheiro da bolsa-família no jogo e passando fome. Uma CPI está sendo instaurada no Congresso para investigar “o jogo patológico” e a lavagem de dinheiro por espertalhões no país e no exterior.

Eminentes autores brasileiros escreveram alentados artigos sobre o assunto, citando Um Jogador, novela autobiográfica de Dostoiévski, e Dr. Freud que escreveu Dostoiévski e o parricídio. Para Freud, os jogadores compulsivos carregariam um desejo inconsciente de perder, e o jogo os aliviava do sentimento de culpa.

Ao contrário das loterias, que tem um ritmo semanal ou anual, o jogo na internet é instantâneo, como nos cassinos, apaixonante. Nos EUA, loterias estaduais pagam optativamente o prêmio parcelado, evitando que seus ganhadores percam tudo em pouco tempo. A maioria dos ganhadores da Mega-Sena acabou na miséria.

Estando em Porto Alegre, visitando minha família materna, fui de ônibus até o Uruguai e quis conhecer os cassinos de Punta del Este. Os jogadores eram velhos. Alguns alquebrados eram meros observadores. Os porteiros e seguranças ofereciam fichas a eles para entrarem no jogo e acabarem com o que ainda lhes restava na vida. Aquilo me chocou!   

E o que tem a ver as mãos com tudo isto? Duas lições! Um colega e amigo quando almoçávamos em um restaurante na rua do Liceu, frequentado por jornalistas e radialistas, me disse em surdina: aquele senhor ali é um crupiê. Perguntei se ele o conhecia e ele negou. - Como você sabe? - Pelo narcisismo das mãos.

De fato, o tipo tinha unhas muito bem tratadas e dobrava e desdobrava o guardanapo elegantemente repetidas vezes. Meu amigo velho jogador me explicou, no jogo de cartas todos os olhares são para as mãos do crupiê que baralha as cartas e pode marcar uma carta com a unha ou passar duas cartas coladas para um parceiro.

Não cheguei a conhecer Pedro Bloch, que é autor do genial monólogo, As mãos de Eurídice, que Rodolfo Mayer recitou mais de três mil vezes e foi sucesso na Broadway, em Londres e Madri com outros atores. A estória é a desventuras de um homem rico que abandona a família ao se apaixonar por uma jovem bela e ambiciosa cobrindo-a de joias. Vão para Mar del Plata, na Argentina, onde ela torra sua fortuna nos cassinos. A imagem das mãos de Eunice manuseando as cartas viraram um fetiche para ele.

Na miséria, ele pede a ela para devolver as joias, mas ela nega. Tenta retornar à família, mas não é recebido. Apaixonado, volta a Eurídice e é também rejeitado. Desesperado ele a mata e se acaba numa cadeia. A vida é como um cassino. Os jogadores compulsivos que arriscam e perdem tudo só encontram alívio para sua culpa na prisão.


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