Artigos de Jornal


A véspera

  • 13 de Outubro de 2024

Para a maioria das pessoas a véspera é a antessala do dia de amanhã, que apesar de tudo, é sempre uma esperança. Na semana passada num final de dia veio me visitar uma lua-nova lindíssima no poente ainda azul do meu jardim. Era a chegada da véspera, como os romanos chamavam à “tardinha”, expressão que deriva de vésper ou o aparecimento do que eles acreditavam ser uma estrela, Vénus. Uma hora de encantamento, pois Vénus era para eles a deusa da beleza e do amor. Céu de aquarela em tons azuis, encarnados e violáceos que se agrisalham em pouco tempo nos trópicos.

A Véspera tem muitos significados e dela deriva o termo vespertino, que qualifica os jornais da tarde ou as jornadas de trabalho. Para os judeus a véspera é uma hora de oração e o início de um novo dia com o aparecimento da primeira estrela. O Shabat, seu dia santo, começa na sexta-feira ao anoitecer e acaba na mesma hora no sábado.

Os cristãos partiram a noite em duas metades e colocaram o início do dia na meia noite, quando adotaram o calendário Gregoriano, em 1582. Para os católicos, a véspera é a hora em que um anjo apareceu a Maria e anunciou que ela daria à luz a um filho salvador do mundo. A véspera é praticamente a único momento do dia que é marcado pela música da Ave Maria, nas rádios, como aquela lindíssima de Charles Gounod em louvor a Maria, composta sobre uma fuga de Sebastian Bach ou a de Franz Schubert e a de Giulio Caccini. Vésperas, no plural, são as orações e os cantos entoados nos mosteiros ao acender as velas.

Vivi dois anos em Roma e o tramonto ou, o sol além dos montes, se prolongava até às nove da noite, no verão, em um espetáculo sem fim. Salvador é privilegiada, é talvez a única cidade brasileira em que o sol se põe sobre o mar, no Porto da Barra, e me sinto no Pacífico ou no Caribe. Mas o nosso pôr-do-sol é brevíssimo. Enorme e em brasa, ele mergulha no mar em poucos minutos para fazer uma viagem vertiginosa em torno da Terra em 12 horas e voltar a brilhar sobre o mar, agora de Itapoã, numa aurora radiante, mas também sôfrega. Por que o sol é tão apressado?

Herivelto Martins, casado com Dalva de Oliveira, compôs em 1942 um clássico da música brasileira, Ave Maria no Morro, sobre fundo musical de Gounod e Bach: Lá não existe/ Felicidade de arranha-céu/ Pois quem mora lá no morro/ Já vive pertinho do céu [...] Sinfonia de pardais/ Anunciando o anoitecer/ E o morro inteiro/ No fim do dia/ Reza uma prece/ À Ave Maria.

Foi reproduzida no bel canto de Andrea Bocelli em 1994 e o italiano Zucchero, do Scorpions, com sua voz de açúcar, a transformou em um sucesso internacional em 2012, cantando em português e em italiano.

 

Véspera para mim, não é apenas a antessala do amanhã, é esta hora mágica em que relembro o badalar dos sinos ao longe e o abrir das boninas nos quintais da minha infância.


Últimos Artigos