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A roda e o círculo vicioso
A roda é uma das invenções humanas mais antigas e importantes, datada de 3.000 a 4.000 aC e surgida contemporaneamente na Mesopotâmia, no Cáucaso e na Europa Central. Com todo o desenvolvimento tecnológico atual ainda não se descobriu um substituto para ela nos veículos, fábricas e hospitais.
São infinitos os seus usos, mas há um que desempenhou uma função muito importante até o fim do Estado Novo. Eram as “rodas dos expostos” ou “enjeitados” e estavam presentes nos conventos de freiras, nas Santas Casas e nas pupileiras. Vi uma dessas “rodas” no recém inaugurado Museu da Misericórdia.
Mães solteiras, que não podiam criar seus filhos, colocavam seus bebês nessas “rodas”, sem serem vistas, e tocavam uma sineta para que eles pudessem sobreviver lá dentro. Milhares de crianças cresceram sem conhecerem seus pais ou família e sem afeto. Hoje não existe mais a roda e muitos bebês são encontrados em lixeiras e encaminhados seletivamente para orfanatos dos Juizados de Menores.
Milhares de adolescentes, fugindo de maus-tratos domésticos, são explorados como ambulantes nas sinaleiras, quando não se prostituem para sobreviver como sem tetos. Não conheço nenhuma campanha para adoção ou apadrinhamento dessas crianças.
Este cenário contrasta com as campanhas na televisão e jornais para adoção e cuidados com os pets. Proliferam as lojas com rações especiais, guloseimas, roupinhas, sapatilhas e brinquedos para esses novos filhos das famílias baianas e brasileiras. Igualmente se proliferam os anúncios de clínicas psicológicas, hospitais, hotéis, colônias de férias, dog-sitters e educadores de pets. Não existem mais vira-latas nas ruas, nem pets-órfãos, embora todos nós padecemos desse complexo, segundo Nelson Rodrigues.
Casais que se separam, muitas vezes entram na Justiça para gozarem de guarda compartilhada de seus pets. O Congresso criou leis sobre o tratamento de animais de estimação no transporte aéreo e rodoviário e está regulamentando o RG dos pets com a obrigatoriedade de uso, em suas coleiras, de um QR code com sua identidade, data de nascimento, nomes dos pais, endereço residencial, seguro de saúde (opcional) e cartão de vacinação. As nossas ruas estão cheias de adolescentes desalentados, indocumentados e abandonados. No interior, não se vê uma só cabra, ovelha, jumento ou boi abandonado.
Não critico as famílias que adaptam pets, mas não entendo porque crianças de orfanatos e sem teto não gozam dos mesmos cuidados e direitos de cães e gatos. Neste Natal, na campanha dos Correios de pedidos de presentes ao Papai Noel, vi pasmo na TV muitas crianças pobres pedirem uma boneca ou uma bola e uma cesta básica. Apesar de sermos o celeiro do mundo, o Agro é pop está na Globo, ainda há muitas crianças neste país que sonham receber uma cesta básica de alimentos no Natal!