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Toda água vai para o mar

  • 02 de Fevereiro de 2025

Acordei no meio da noite com o som de uma pingadeira. Pensei que fosse a torneira do sanitário pingando. Não era, olhei pela janela e vi uma cortina de fios d’água caindo do beiral da casa. Voltei para cama e dormi ninado pelo barulho da chuva. Um sono tranquilo, enquanto Salvador virava um rio. Me lembrei de Reminiscências, poema de Mário Quintana.

“A enchente de 1941. Entrava-se de barco pelo corredor da velha casa de cômodos onde eu morava. Tínhamos assim um rio só para nós. Um rio de portas adentro. Que dias aqueles! E de noite não era preciso sonhar: pois não andava um barco de verdade assombrando os corredores? Foi também a época em que era absolutamente desnecessário fazer poemas.”


Mas enquanto eu dormia tranquilo, famílias pobres saiam de suas casas com o som das sirenes da Defesa Civil avisando que elas poderiam ruir com o corrimento da terra. Como é injusta a chuva, ou melhor a Prefeitura, que não planeja e oferece a essas famílias lugares seguros para morar e não encostas periclitantes.

Sirene é o canto da Sereia, ou Yemanjá, Rainha do Mar. O mar sempre encantou os poetas e escritores, como Neruda e Ernest Hemingway com a sua bela novela O Velho e o Mar. Há alguns anos fiz uma visita à casa de Pablo Neruda em Isla Negra, no Chile. Essa casa ele comprou em 1938 para viver escondido com Matilde Urrutia, então sua amante, e terceira e última esposa. Casa que ele apelidou de Chascona, ou desgrenhada, em alusão a cabeleira de Matilde ao vento do Pacífico. Passou a residir nela em 1952.

A casa era, sim, uma desgrenhada com os vários puxadinhos que ele fez ao longo do tempo. Numa delas, ele criou um quarto coberto de chapas de zinco, para ouvir a chuva no telhado, como ouvia na infância na casa de seu pai, um ferroviário, no conjunto da companhia do trem de ferro. Nela ele colecionou objetos resgatados do mar como restos de naufrágios misteriosos, não sabia onde. Procurei alguma garrafa de náufrago, mas não encontrei.

Hemingway faz uma bela reflexão no seu livro sobre “la mar”, como os pescadores de Cuba chamavam o oceano, no feminino, como no francês, porque a lua influencia as marés como as mulheres na menstruação.

Depois de dias no mar, o velho Santiago conseguiu arpoar um marlin-azul gigante, maior que seu barco, que o arrastou para o alto mar, mas lutou com ele outros tantos dias até conseguir matá-lo. Amarrou-o ao barco e rumou para a praia com o trunfo de sua vitória sobre o mar bravio para mostrar aos companheiros. Mas no caminho o peixe foi devorado pelos tubarões e só restou seu espinhaço.

Dorival Caymmi também se encantou com o mar: É doce morrer no mar/ Nas ondas verdes do mar/ Saveiro partiu de noite e foi/ Madrugada não voltou/ O marinheiro bonito/ Sereia do mar levou.

Com essas estórias de mar homenageio Yemanjá em seu dia maior.  


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