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Uma arqueologia da sociedade americana

  • 21 de Dezembro de 2014

Quem não viu perdeu um grande filme cotado para o Oscar de direção deste ano, embora abominado por alguns. Estou falando de “Boyhood, da infância à adolescência”, de Richard Linklater que rastreia a vida de um menino dos 6 aos 18 anos, Manson, e sua irmã mais velha, Samantha, e suas relações com a família. Trata-se de uma família comum de classe média, sem nenhum episódio relevante, filmada durante doze anos. Daí a genialidade de seu diretor que prende a atenção do espectador por quase três horas.

Cinematograficamente Linklater introduz uma linguagem nova, sem narrativas nem legendas cronológicas. Não pretende fazer história (documentário), nem estória (ficção) ou tese. Oferece ao espectador fragmentos do cotidiano de uma família referenciados pelos cantores de moda e romances best-sellers da época, como um arqueólogo que inventaria ossos e cacos de cerâmica por estratos e deixa aos antropólogos reconstruir hipoteticamente uma civilização. Ele faz o mesmo no filme, deixando ao espectador interpretar flashes da vida de um garoto introspectivo, provavelmente em função das mudanças de domicilio, escola e padrasto violentos em decorrência dos casamentos frustrados da mãe.

O que mais chama a atenção nesse filme é o peso da educação na sociedade norte americana, não apenas na escola pública, integral e de qualidade, mas em casa com a cobrança de horários, realização dos home works, compartilhamento das tarefas domesticas, acampamentos em parques naturais, participação em campanhas políticas e a saída de casa ainda na adolescência para estudar longe da família, começando a trabalhar e assumindo responsabilidades muito cedo. Quando Manson se refugia na câmara-escura para fazer o hobby que gostava, o instrutor lhe adverte que não basta talento é preciso disciplina para vencer e que ele deve voltar a sala da aula.

Apesar do seu bom desempenho nos estudos ele não ganha um carro novo da mãe, nem o vintage car do pai, senão compra uma pick-up velha para rodar com a namorada nas estradas desoladas do Texas. Uma atitude oposta a dos nossos pais de classe média, que criam mauricinhos e patricinhas mimados e pouco participativos. Numa coisa somos iguais. É a mãe, especialmente das nossas classes C e D, a referência e o arrimo da família. O filme mostra que a segurança econômica numa sociedade capitalista só se alcança com a educação. No caso da mãe, ela precisa terminar a faculdade para ser professora e criar dignamente os filhos. Um “chicano” que fazia biscates em sua casa reencontra a patroa, anos depois, em um restaurante onde é gerente e agradece a ela por lhe ter aconselhado a estudar.

O filme mostra também o lado oposto da moeda, o culto às armas, a violência e o alcoolismo. A competitividade naquela sociedade, que não admite meio termo entre vencedores (winners) e perdedores (losers), leva também alguns jovens a fuzilarem colegas nas escolas onde estudam ou à frustração da mãe que declara na conclusão do curso secundário do filho: “Eu nasci, casei, tive filhos, consegui o emprego dos sonhos, casei de novo, divorciei, vi Samantha ir para a faculdade, vi você ir para a faculdade e depois? Só meu funeral”.

SSA: A Tarde de 21/12/14


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