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Uma arqueologia da sociedade americana
Quem não viu perdeu um grande filme cotado para o Oscar de direção deste ano,
embora abominado por alguns. Estou falando de “Boyhood, da infância à
adolescência”, de Richard Linklater que rastreia a vida de um menino dos 6 aos
18 anos, Manson, e sua irmã mais velha, Samantha, e suas relações com a família.
Trata-se de uma família comum de classe média, sem nenhum episódio relevante,
filmada durante doze anos. Daí a genialidade de seu diretor que prende a atenção
do espectador por quase três horas.
Cinematograficamente Linklater introduz uma linguagem nova, sem narrativas nem
legendas cronológicas. Não pretende fazer história (documentário), nem estória
(ficção) ou tese. Oferece ao espectador fragmentos do cotidiano de uma família
referenciados pelos cantores de moda e romances best-sellers da época, como um
arqueólogo que inventaria ossos e cacos de cerâmica por estratos e deixa aos
antropólogos reconstruir hipoteticamente uma civilização. Ele faz o mesmo no
filme, deixando ao espectador interpretar flashes da vida de um garoto
introspectivo, provavelmente em função das mudanças de domicilio, escola e
padrasto violentos em decorrência dos casamentos frustrados da mãe.
O que mais chama a atenção nesse filme é o peso da educação na sociedade norte
americana, não apenas na escola pública, integral e de qualidade, mas em casa
com a cobrança de horários, realização dos home works, compartilhamento das
tarefas domesticas, acampamentos em parques naturais, participação em campanhas
políticas e a saída de casa ainda na adolescência para estudar longe da família,
começando a trabalhar e assumindo responsabilidades muito cedo. Quando Manson se
refugia na câmara-escura para fazer o hobby que gostava, o instrutor lhe adverte
que não basta talento é preciso disciplina para vencer e que ele deve voltar a
sala da aula.
Apesar do seu bom desempenho nos estudos ele não ganha um carro novo da mãe, nem
o vintage car do pai, senão compra uma pick-up velha para rodar com a namorada
nas estradas desoladas do Texas. Uma atitude oposta a dos nossos pais de classe
média, que criam mauricinhos e patricinhas mimados e pouco participativos. Numa
coisa somos iguais. É a mãe, especialmente das nossas classes C e D, a
referência e o arrimo da família. O filme mostra que a segurança econômica numa
sociedade capitalista só se alcança com a educação. No caso da mãe, ela precisa
terminar a faculdade para ser professora e criar dignamente os filhos. Um
“chicano” que fazia biscates em sua casa reencontra a patroa, anos depois, em um
restaurante onde é gerente e agradece a ela por lhe ter aconselhado a estudar.
O filme mostra também o lado oposto da moeda, o culto às armas, a violência e o
alcoolismo. A competitividade naquela sociedade, que não admite meio termo entre
vencedores (winners) e perdedores (losers), leva também alguns jovens a
fuzilarem colegas nas escolas onde estudam ou à frustração da mãe que declara na
conclusão do curso secundário do filho: “Eu nasci, casei, tive filhos, consegui
o emprego dos sonhos, casei de novo, divorciei, vi Samantha ir para a faculdade,
vi você ir para a faculdade e depois? Só meu funeral”.
SSA: A Tarde de 21/12/14