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A despedida
A DESPEDIDA
Paulo Ormindo de Azevedo
O funeral de uma velha amiga, mãe de uma querida orientanda minha, foi no Jardim da Saudade. Imaginava que fosse uma cerimônia triste, mas não foi. Márcia considerou a morte da mãe um episódio natural de sua vida, bem vivida, como artista e ativa cidadã política. A mãe era de uma mulher vibrante e irreverente, que fora minha vizinha na juventude na Barra Avenida e convivemos algumas sessões de trabalho e recepções em sua casa.
No velório e a caminho do crematório encontrei velhos amigos, que há muito não via. Na capela aquela dama reuniu todos nós para a sua despedida. Não sou espírita, mas ela estava ali presente com os parentes e amigos como nos recebia em sua casa para confraternizações.
Recordei-me do filme norte americano O Reencontro, The Big Chill, de 1983, com roteiro e direção de Lawrence Kasdan. Depois de dez anos, sete alunos da Universidade de Michigan se reúnem numa pequena cidade da Carolina do Sul para o funeral de um colega, o mais brilhante da turma, que havia falecido alguns dias antes. Naquela oportunidade cada um deles contou a sua vida naqueles dez anos e aquele velório se transformou num reencontro, num renascer. Não posso dizer que na reunião da semana passada passei por uma experiência semelhante, mas foi muito agradável rever a família e a comunidade de amigos.
Na capela do crematório, Márcia e sua filha, sem verter uma só lágrima, recordaram a juventude batalhadora da mãe e avó, a convivência com a família e amigos e sua entrada aos 40 anos na universidade para se transformar em uma conceituada profissional e artista. Num tripé uma coroa com o pedido dela: “Não quero choro nem vela”, refrão da canção Fita Amarela, de Noel Rosa. Não sei como foi sua morte, mas teve tempo de fazer o pedido e ser atendida. Tão diferente de outros enterros que participei, com choros, gritos e desmaios.
Como Gilberto Gil, digo que não tenho medo da morte, mas de morrer. Quero morrer como antigamente, em casa, sem ser entubado, nem em uma UTI vendo os vizinhos partirem a cada dia. Condenado a esta morte à prestação, Darcy Ribeiro telefonou a um médico amigo pedindo para sequestrá-lo e levar para um lugar bonito onde ele pudesse acabar dois livros. Dois meses depois terminou a tarefa e pediu a São Pedro para ser coroado como Imperador na Festa do Divino, que nunca conseguiu realizar quando era menino, vestido de príncipe com coroa, manto e bandeira vermelha com a Pomba da Paz no centro.
Estamos vivendo mais e morrendo pior numa maca de UTI asséptica e gelada ou em casa com home care penando durante meses. Até a morte virou um negócio. Já pedi a meus filhos que quero ter uma morte pré-industrial. Quero partir dormindo sonhando o regresso ao princípio e me encantar numa cama onde fui concebido e despertar no paraíso ou coisa que valha. Viva a vida!
SSA: A Tarde, 07/07/2024