Artigos de Jornal
Súmula de uma gênese
No princípio Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra era solidão e caos,
e as trevas cobriam o abismo; mas sobre as águas adejava o sopro de Deus...
Então o Senhor formou o homem com o pó da terra e lhe insuflou nas narinas um
hálito de vida, e com isso tornou-se o homem uma alma vivente.
Livro do Gênesìs
Há sete anos, um grupo de médicos e paramédicos, sob o comando da Dra. Bela
Zausner, se reúne diariamente no hospital Santo Amaro, gentilmente cedido pelo
Dr. José Silveira, para celebrar esse milagre. Era a Clínica Gênese, que seria
responsável pelo nascimento de algumas centenas de crianças, que de outra forma
não teriam vindo ao mundo e felicidade de igual número de casais sem filhos.
Instalado em uma salinha de 12 m2, o grupo foi se desvencilhando de outros
compromissos e crescendo, ano após ano. Chegou o momento que a clínica atingiu
sua maioridade e resolveu criar asas, conquistar seu espaço próprio. Não
faltaram ofertas de edifícios altos, luxuosos e com nomes complicados, mas sem
caráter, nem calor. O grupo já possuía um belo terreno na Alamedas das Algarobas,
mas que havia sido condenado pelos corretores e burocratas.
Lembrando velhas estória infantis, em que cegonhas fazem seus ninhos nas
chaminés de casas residenciais, este riscador, que é também amigo da Dra. Bela,
resolveu mediar os legítimos anseios do grupo com as normas municipais. Foram
consultas e tramitações as mais diversas, pelos labirintos dos cartórios e da
SUCOM: segunda via da escritura de partilha, reintegração de posse e
rerratificação do lote que havia emagrecido e sido invadido de tanto esperar,
quitação de IPTUs perdidos, aprovação de AOPs, perícias, obtenção de alvará de
construção e outras exigências protocolares. E tudo sob as investidas
recorrentes de corretores “muy amigos” oferecendo pisos acarpetados, porteiros
de casaca, elevador com voz fantasma e antena coletiva, localizados nos Suarez
mais chiques da Rótula da Rodoviária.
Seu projeto foi literalmente uma obra de bioengenharia, para compatibilização
dos gens do SEM, GASUP, GERAE, TAC, e Vigilância Sanitária e de toda complexa
carga genética de Bela. Foram implantados cinco projetos devidamente fecundados,
dos quais vingou apenas um, com paternidade reconhecida pelos padrinhos e
autoridades competentes. Mas sua gestação foi complicada, tubária, agravada
pelos antojos e desejos da gestante, genial e geniosa.
A Dra. Bela não satisfeita da sua condição de mãe e provedora, resolveu dar uma
de parteira aparadora, auto-parteira. Foram mil reuniões com credores,
instaladores, decoradores, prestamistas, marmoristas, seguranças, auditores,
estucadores, anestesistas, cambistas e fornecedores que resultaram em demissões
coletivas, revisões de projetos, reajustes orçamentários, defenestrações,
anulação de contratos, separações, cancelamento de pedidos, troca de
fornecedores, notificações, brigas, intrigas e buchichos. Para segurar a
adrenalina foram necessários overdoses sucessivas de Lexotan, o que evitou
algumas ameaças de aborto e enfarte. Dava dó ver a Bela atormentada. Mas
felizmente a paciente reagiu bem à medicação.
Como acontece nesses casos, a gestante só foi entender, muito tarde, que parir
um edifício é muito mais complicado e doloroso do que um bebê. E que teria sido
muito melhor voltar a sua poltrona, apertar o cinto, relaxar e deixar o comando
do Boeing à tripulação. A futura mamãe deve apenas curtir a gravidez e fazer a
força no momento indicado, e que força!
Mas o anúncio do nascimento próximo fez mudar o humor da paciente, com a
realização de animados chás de cozinha, reuniões de comadres no segundo andar,
troca de mimos e viagens a São Paulo para a compra do enxoval multicolorido do
bebê, fazendo esquecer as agruras da gravidez de auto-risco. Como acontece com
toda recém-parida, jurou nunca mais transar, para não se “embarazar” novamente.
Passado o puerpério, porém, já está pensando aumentar a prole, criar uma
maternidade, um hospital talvez!
Alguns visitantes desatentos não entenderão o edifício, já que ele é convexo e
côncavo ao mesmo tempo. Arredondado por fora, como um ventre prenhe, como um
seio. Côncavo e aconchegante por dentro, com seu pátio interno, como um útero,
um ovário ou, em sua falta, uma proveta. Este é o espaço mais importante do
edifício, o limbo, a última esperança para um punhado de mulheres à beira de um
ataque de nervos.
Ali, elas curtem cheias de confiança os rituais de exames que antecedem a
inseminação ou à implantação do embrião salvador. Alcançada a graça, voltam
àquele pátio em romaria, a cada ano, para depositar o santinho do pimpolho no
quadro dos milagres. Para os homens, estranhos no ninho, aquele gineceu é o
inferno. Ali, esperam pacientes, sob os olhares indiscretos e complacentes do
mulherio indócil, o chamado para a cópula solitária, com minutos contados, na
sala dos espelhos. É a suprema humilhação, o escárnio público pelo mal
cumprimento de suas obrigações maritais. A falta de tesão!
Por tudo isto, este espaço mereceu um tratamento especial. Em seu centro, está
uma palmeira tropical que esconde uma víbora traiçoeira, cenário bíblico e
monumento à fertilidade, à graça e ao veneno feminino. Recobre o pátio uma
abóbada de policarbonato, que se abre gentilmente para captar uma nuvem perdida
e a lua em sua ronda noturna. A lua, que move marés, conduz a seiva ao olho dos
coqueiros e jequitibás mais altos, pode também fazer o milagre de drenar os
hormônios mais renitentes e provocar um novo cio, uma ereção matinal, uma
ovulação temporã.
Consultórios, laboratórios, centro cirúrgico e salas de recuperação
distribuem-se à sua volta, em dois pavimentos. No último andar, fica a área de
lazer, que ninguém é de ferro, a cantina e o salão de estudo e confraternização
abrindo-se para o terraço do happy hour. Mas falem baixo, pois pode haver uma
Bela adormecida na alcova anexa, sob os olhares atentos de alguma fera à
espreita.
Esta é a Clínica Gênese, um edifício sem mordomo de casaca, nem elevador com voz
fantasma, mas meio mágico, curvo e recôncavo como um útero, onde toda manhã um
Espírito penetra com as brisas da Viração, invade seu interior e laboratórios
estéreis e sopra nas provetas da Fada Madrinha um hálito de vida e amor, porque
na Gênese todo dia é dia de criação.
SSA: A Tarde, 12/07/97
PS – Discurso proferido pelo autor do projeto na inauguração da Clínica Gênesis