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Niemeyer: compasso e melodia
Qual seria a contribuição de Niemeyer para arquitetura universal? Nos anos 30
ele rompia ineditamente com a rigidez racionalista do Modernismo, reintroduzindo
o sentimento na arquitetura. A emoção se expressa em sua obra pelas curvas em
oposição à reta e ao ângulo reto, mas em perfeita harmonia com as razões do
concreto armado. Hábil desenhista, ele juntou a formação numa Escola de Belas
Artes com a técnica dos engenheiros. Sua obra é inseparável de grandes
estruturalistas, como o poeta Joaquim Cardozo e o Prof. José Carlos Sussekind.
Não sei por que quando ouço as Bachianas Brasileiras me sinto surfando nas ondas
de Niemeyer. Como Vila Lobos ele articulava o chorinho com Bach. Seu compasso
eram essencialmente carioca e nada tinha a ver com o esquadro de Le Corbusier,
salvo o fato de ter sido exaltado por ele. A frondosa obra de Oscar Niemeyer,
embora divulgada em fotos e vídeos, carece de estudos à altura da sua
contribuição à Arquitetura. Salvo os textos de Stamo Papadaki, do inicio dos
anos 50, praticamente tudo que se escreveu sobre sua obra é superficial. Este
artigo procura modestamente contextualizar sua obra no tempo e no espaço.
Niemeyer dominou a composição arquitetônica como poucos maestros suas
orquestras. É preciso não esquecer que a arquitetura está mais próxima da musica
do que de qualquer outra arte, pela sua construção envolvente, pelo seu
desenvolvimento sinfônico em vários planos superpostos, pelo ritmo de suas
colunatas e aberturas, pela percussão dos passos na madeira, pelo brilho dos
metais e cristais, pelos crescentes de luzes e pela harmonia do interior com o
exterior e das partes com o todo.
Nos palácios da Alvorada e do Planalto, ele resgatou o valor rítmico das
colunas, meros suportes camuflados na arquitetura contemporânea, a ponto de
André Malraux, Ministro da Cultura da França, dizer que depois das colunatas
gregas aquelas eram as mais belas que havia visto. Mas Niemeyer, um
perfeccionista, não se satisfazia com a cadência chã das colunatas clássicas,
que ele mesmo havia reproduzido nesses dois palácios e no Itamaraty, e fez
variar seu compasso na sede do Grupo Mondadori, na Itália, criando uma das mais
harmônicas colunatas do mundo.
A modulação melódica de suas coberturas e marquises se inspirava, como ele não
se cansava de repetir, na silhueta dos morros, na sinuosidade dos rios e praias
de sua cidade, no movimento das ondas e nas curvas sensuais da mulher
brasileira. Esta foi a inspiração também de Burle Marx e de músicos cariocas
contemporâneos, como Tom Jobim, Roberto Menescal, Billy Blanco e Chico Buarque,
eles também iniciados na arquitetura.
Recorde-se Tom e Vinícius no Samba do Avião: “minha alma canta/ vejo o Rio de
Janeiro... seu mar/ praias sem fim” e o Corcovado emoldurado por uma janela ou
ainda a “moça do corpo dourado/ do sol de Ipanema”. A praia e suas sereias são a
inspiração de Braguinha e Dorival Caymmi em duas odes a Copacabana como a
Guanabara, seu mar e ilhas são o mote de Roberto Menescal e Ronaldo Boscoli em O
Barquinho, “que desliza sem parar no azul macio do mar”.
Boémio quando jovem, Niemeyer sempre curtiu a dança e a música e homenageou as
escolas de samba cariocas com um arco do triunfo no Sambódromo, onde desfilou
homenageado por uma escola. A reciproca também é verdadeira, a música pode se
transformar em desenho. O musicólogo baiano Paulo Lima tem interessante ensaio
mostrando como Tom Jobim em “Wave” riscou na pauta musical o movimento das ondas
que cantava.
Não se pode sujeitar criticamente a obra ao homem. Niemeyer, um cidadão engajado
politicamente, que doou o seu escritório em 1946 para a sede do PCB, nunca
acreditou em “arte social”, mas dizia que mesmo trabalhando para o poder e a
burguesia se confortava em saber que seus monumentos despertava o sentimento de
beleza no povo. Em Brasília, há duas semanas, pude constatar que havia todo tipo
de gente, inclusive trabalhadores, se despedindo desse criador infatigável, que
nunca tirou férias e não precisava dormir para sonhar. Morreu aos 105 anos
reclamando que queria trabalhar.
Caderno Cultural de A Tarde, de 23/12/12