Artigos de Jornal
Do tempo da machambomba
Com exceção de alguns pernambucanos velhos, poucos leitores sabem o que é
este termo. Os primeiros veículos a motor que rodaram nas nossas cidades, na
metade do século XIX, eram bondes a vapor, ou machambombas. O termo é corruptela
de “machine pump”, maquina a vapor ou “maria fumaça”. Câmara Cascudo o registra
como apelido dos trens da Empresa Trilhos Urbanos do Recife (1867). Também
tivemos trens urbanos na Cidade Baixa Os ingleses, pioneiros neste meio de
transporte, divulgaram os trens e a expressão em Angola, Moçambique e Guiné
Bissau, onde é ainda usado no masculino significando transporte público e buzu
fumegante. O Dicionário Houaiss o assinala como regionalismo português
significando ônibus velho ou trem em cremalheira.
As “marias fumaças” tinham que rodar a céu aberto. Todas as linhas de trens a
vapor que cortavam as cidades europeias e americanas foram postas no subsolo e
cobertas de jardins quando da chegada da eletricidade. Pois é, os trens urbanos
estão de volta a Salvador. Não serão aquelas locomotivas cinematográficas
Baldwin, que inspiraram Villa Lobos em seu “O tremzinho caipira”, senão uma
daquelas triviais composições elétricas da Central do Brasil que servem ao
subúrbio carioca e trafegam com pingentes até no teto.
Das três alternativas da linha 2 do nosso metrô: 1) em trincheira, mantendo o
gramado e abafando o ruído; 2) elevada conservando o gramado mas não evitando o
barulho e 3) de superfície acabando com a vegetação e exigindo viadutos e
passarelas, os técnicos do Estado preferiram a pior, o seja, uma ferrovia
suburbana correndo entre muros e cercas. Ela segregará áreas urbanas, aumentará
o congestionamento e inviabilizará outros modais por onde passa. A banda Oeste
da cidade estará separada da Leste, numa extensão de 12 km, por esta barreira.
Para transpô-la teremos apenas três viadutos com duas faixas em cada direção. A
linha 2 do metrô que está sendo construída será mais uma obra bilionária, para
júbilo das empreiteiras, que vai criar mais problemas que soluções.
Não creio que tenha sido intencional, mas a linha 2 do metrô e a Via Expressa
sitiarão assepticamente o chamado Miolo pobre e desestruturado de Salvador da
faixa glamorosa da Orla com praias e condomínios fechados. Os técnicos do Estado
dirão que esta é a solução mais barata, como se isso justificasse a segregação
sócio-espacial. Mas não é, pelo contrario, só ganha para um monorail aéreo. Os
milionários viadutos e passarelas que já começam a ser construídos garrotearão a
mobilidade transversal de veículos e a acessibilidade de pessoas.
Um metrô simples construído em trincheira manteria o gramado e dispensaria
viadutos e passarelas. Seria silencioso e não obstruiria a visão, os retornos,
nem o atravessar o canteiro central. Por que estas questões não são debatidas
publicamente? Porque o Estado abdicou da atribuição de planejar e executa apenas
os projetos carimbados ofertados pelas empreiteiras, sem a menor analise
critica. Esses, sim, planejam a cidade em função de seus interesses e
compromissos. Mas a cidade também é nossa!
Audiências públicas em periferias desinformadas, com power points coloridos e
maquetes deslumbrantes, quando as decisões já foram tomadas, é teatro que não
convence mais ninguém. Gestão democrática e contemporânea passa por construção
de alternativas e consultas prévias a conselhos, associações profissionais e
universidades que podem decodificar alternativas técnicas complexas para a
população e discutir com ela seus efeitos na vida cotidiana. Fora disto é só
protesto, depredação, desmoralização e surpresas eleitorais.
Construir uma ferrovia murada cortando a cidade ao meio, com pátios ferroviários
e subestações no canteiro central e debaixo de viadutos, como na Av, Bonocô, é
uma intervenção urbana grosseira da era carbonífera, quando os trens expeliam
rolos de fumaça. É preciso que o público saiba que não se está construindo um
metrô, senão uma rede ferroviária urbana da geração das machambombas, com
barreiras físicas e sociais que só incrementarão a segregação e a violência. É
esta a cidade que queremos construir?
SSA, A Tarde, 18/08/13