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Do tempo da machambomba

  • 18 de Agosto de 2013

Com exceção de alguns pernambucanos velhos, poucos leitores sabem o que é este termo. Os primeiros veículos a motor que rodaram nas nossas cidades, na metade do século XIX, eram bondes a vapor, ou machambombas. O termo é corruptela de “machine pump”, maquina a vapor ou “maria fumaça”. Câmara Cascudo o registra como apelido dos trens da Empresa Trilhos Urbanos do Recife (1867). Também tivemos trens urbanos na Cidade Baixa Os ingleses, pioneiros neste meio de transporte, divulgaram os trens e a expressão em Angola, Moçambique e Guiné Bissau, onde é ainda usado no masculino significando transporte público e buzu fumegante. O Dicionário Houaiss o assinala como regionalismo português significando ônibus velho ou trem em cremalheira.

As “marias fumaças” tinham que rodar a céu aberto. Todas as linhas de trens a vapor que cortavam as cidades europeias e americanas foram postas no subsolo e cobertas de jardins quando da chegada da eletricidade. Pois é, os trens urbanos estão de volta a Salvador. Não serão aquelas locomotivas cinematográficas Baldwin, que inspiraram Villa Lobos em seu “O tremzinho caipira”, senão uma daquelas triviais composições elétricas da Central do Brasil que servem ao subúrbio carioca e trafegam com pingentes até no teto.

Das três alternativas da linha 2 do nosso metrô: 1) em trincheira, mantendo o gramado e abafando o ruído; 2) elevada conservando o gramado mas não evitando o barulho e 3) de superfície acabando com a vegetação e exigindo viadutos e passarelas, os técnicos do Estado preferiram a pior, o seja, uma ferrovia suburbana correndo entre muros e cercas. Ela segregará áreas urbanas, aumentará o congestionamento e inviabilizará outros modais por onde passa. A banda Oeste da cidade estará separada da Leste, numa extensão de 12 km, por esta barreira. Para transpô-la teremos apenas três viadutos com duas faixas em cada direção. A linha 2 do metrô que está sendo construída será mais uma obra bilionária, para júbilo das empreiteiras, que vai criar mais problemas que soluções.

Não creio que tenha sido intencional, mas a linha 2 do metrô e a Via Expressa sitiarão assepticamente o chamado Miolo pobre e desestruturado de Salvador da faixa glamorosa da Orla com praias e condomínios fechados. Os técnicos do Estado dirão que esta é a solução mais barata, como se isso justificasse a segregação sócio-espacial. Mas não é, pelo contrario, só ganha para um monorail aéreo. Os milionários viadutos e passarelas que já começam a ser construídos garrotearão a mobilidade transversal de veículos e a acessibilidade de pessoas.

Um metrô simples construído em trincheira manteria o gramado e dispensaria viadutos e passarelas. Seria silencioso e não obstruiria a visão, os retornos, nem o atravessar o canteiro central. Por que estas questões não são debatidas publicamente? Porque o Estado abdicou da atribuição de planejar e executa apenas os projetos carimbados ofertados pelas empreiteiras, sem a menor analise critica. Esses, sim, planejam a cidade em função de seus interesses e compromissos. Mas a cidade também é nossa!

Audiências públicas em periferias desinformadas, com power points coloridos e maquetes deslumbrantes, quando as decisões já foram tomadas, é teatro que não convence mais ninguém. Gestão democrática e contemporânea passa por construção de alternativas e consultas prévias a conselhos, associações profissionais e universidades que podem decodificar alternativas técnicas complexas para a população e discutir com ela seus efeitos na vida cotidiana. Fora disto é só protesto, depredação, desmoralização e surpresas eleitorais.

Construir uma ferrovia murada cortando a cidade ao meio, com pátios ferroviários e subestações no canteiro central e debaixo de viadutos, como na Av, Bonocô, é uma intervenção urbana grosseira da era carbonífera, quando os trens expeliam rolos de fumaça. É preciso que o público saiba que não se está construindo um metrô, senão uma rede ferroviária urbana da geração das machambombas, com barreiras físicas e sociais que só incrementarão a segregação e a violência. É esta a cidade que queremos construir?

SSA, A Tarde, 18/08/13


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