Artigos de Jornal
Decifra-me ou te devoro
As grandes manifestações de rua do ano passado, que replicam até hoje, é um
enigma semelhante ao da esfinge de Tebas. Ninguém até agora conseguiu
decifra-lo. Será que foi por acaso que a multidão tentou invadir o Congresso, o
Itamaraty, palácios estaduais e municipais, quebrar agencias de bancos e lojas
de carros de luxo e queimar centenas de ônibus em todo o país?
Quem era e o que queriam aqueles “vândalos”, que segundo as autoridades e mídia
não faziam parte do admirável gado novo apascentado, ninguém sabe por quem,
pelas avenidas de todas as capitais do país? Estranho que isto ocorra quando 34
milhões saíram da pobreza, o emprego está em alta e a classe media surfa no
consumo. As antenas do poeta Arnaldo Antunes já haviam captado esta insatisfação
em 1987: “Comida é pasto. A gente não quer só comida, a gente quer comida,
diversão e arte. A gente quer saída para qualquer parte. A gente não quer só
dinheiro, a gente quer inteiro e não pela metade”.
Dizer que as manifestações foram apenas contra a Copa e orquestradas pela mesma
elite que vaiou a presidente no Itaquerão é querer tapar o sol com a mão. Ainda
não existe uma explicação para o fato, mas uma das melhores abordagens da
questão foi feita pelo sociólogo e professor da PUC-Rio Luiz Werneck Vianna em
entrevista na Revista de Historia da Biblioteca Nacional, do mês de junho, nº
105. Luiz Werneck é um intelectual de esquerda, que não faz parte da elite nem
da mídia conservadora.
Werneck afirma que o economicismo tradicionalmente usado para explicar
acontecimentos sociais não decifra esses novos fenômenos. “Ficou claro que há
uma distancia imensa entre o estado e a sociedade, apesar da existência de todos
esses aparelhos... para dar conta de questões especificas, como gênero,
juventude”. Conflito que é dramático nas UPPs do Rio e de S. Paulo. “Há um
verdadeiro levante popular que não se encontra com nenhuma mediação
institucional: partidos, sindicatos, associações. Uma energia muito forte que
não é canalizada para um fim determinado” (p.50), afirma ele.
Werneck admite que o movimento estivesse originalmente ligado a uma classe média
emergente e até a setores tradicionais: “O Movimento Passe Livre, por exemplo,
nasceu na USP com estudantes de origem financeira mais alta. Mas o fato é que
isto galvanizou a imaginação dos jovens que se fizeram presentes. E a questão
toda gira em torno de por que eles não encontraram canais visíveis e já
estabelecidos para onde essas demandas pudessem desembocar” (p. 50).
Sobre esta falta de comunicação comenta: “Vencidas as eleições, o PT
negligenciou sua própria identidade. Deixou de ser um partido da sociedade
civil, mobilizador, e passou a viver como um partido de Estado, com políticas de
Estado para seres subalternos selecionados, hiperburocratizado, perdeu
capacidade de organização, deixou de exercer papel pedagógico, de ensinar às
pessoas o que se está passando, o que se pode fazer”(p.52). Os demais partidos
também perderam a identidade. “O que se está disputando (agora) nem é um projeto
de sociedade ou país. Trata-se de quem irá administrar, no dia a dia, essa
cinzenta ordem burguesa no país” (p.53). Esta reflexão é importante para
reaproximarmos o estado da sociedade.
SSA: A Tarde de 06/07/14