Artigos de Jornal
Carnaval e Urbanidade
O carnaval era festa pagã transformada pelos cristãos em uma espécie de
despedida de solteiro que precedia a quaresma, quando eram proibidos de comer
carne no sentido real e figurado. Prefiro falar em carnavais dada a diversidade
destas manifestações no tempo e no espaço. O entrudo primitivo tem muito pouco a
ver com as carreatas dos anos 40 e o carnaval atual. Do mesmo modo, os carnavais
de Veneza, New Orleans, Rio de Janeiro, Recife e Salvador não têm muito em
comum.
Mas vou confidenciar uma história. Em março de 1980, a convite do Arq. Carlos
Flores Marini, participei na Cidade do México do seminário “El Peaton en el uso
de las ciudades”. Enquanto grandes urbanistas mundiais mostravam os sucessos e
fracassos da “peatonização” de algumas ruas na Europa e América, eu, um
iniciante, fiz uma palestra ilustrada com slides do carnaval de Salvador, onde
mostrava toda a área central da cidade ocupada por foliões cantando e dançando
durante cinco dias.
Desenvolvi o tema apoiado na interpretação de Roberto DaMatta sobre o carnaval
como rito de passagem, em que os foliões, ao invés de vestirem fantasias, se
despiam daquelas impostas pela sociedade e assumiam suas verdadeiras identidades
regressando à infância ou se transvestindo. A plateia foi ao delírio e o exemplo
da Bahia mudou o tom do evento.
Sem negar a teoria de DaMatta, me pergunto hoje de que carnaval ele falava? Com
os anos fui me convencendo que a festa é muito mais complexa que parece e suas
expressões estão muito ligadas à urbanidade e história de cada cidade em que se
realiza. O melancólico carnaval de Veneza não estaria associado à cidade
condenada ao desaparecimento?
O desfile das escolas de samba do Rio, com seus mestres-salas, porta-bandeiras e
comissões de frente não é uma recriação dos desfiles da corte de D. João VI
naquela cidade, que impressionaram tanto os quilombolas dos morros cariocas? No
fundo as escolas de samba tentam resgatar a nobreza ancestral dos negros perdida
com a escravatura. Tinha razão Joãozinho Trinta quando revolucionou o carnaval
carioca com um luxo nunca visto, “porque pobre gosta de riqueza, só quem gosta
de pobreza é intelectual”. No Recife, os grandes mamulengos-zumbis que rodam no
meio do povão que dança frenética e acrobaticamente para despistá-los não será
uma caricatura das relações dos pernambucanos com os mauricinhos holandeses e
seus descendentes?
O carnaval tradicional de Salvador foi talvez o mais autêntico e diversificado,
refletindo uma sociedade estratificada e tribal com os desfiles dos clubes de
classe média, afoxés, cordões, charangas, blocos de índios, cangaceiros e sujos.
Mas isto mudou a partir dos anos 50 com o aparecimento dos trios-elétricos que
demandavam grandes investimentos e ensejou a criação de uma indústria
carnavalesca milionária. Criaram-se trios com cordas de isolamento, mercado
futuro de abadás e camarotes com copulatórios. A grande festa da Bahia passou a
ser uma das mais segregadoras do país, perdendo sua função de trégua para e
interação sócio-racial. O carnaval do sambódromo do Rio está voltando às ruas e
o da Bahia para sobreviver precisa libertar os “cordeiros”, tirar o salto-alto e
descer dos camarotes.
SSA: A Tarde,15/02/15