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A tempestade

  • 16 de Julho de 2017

Assisti, há alguns anos, uma entrevista de Braguinha sobre a sua ode a Copacabana, em que o repórter perguntava o que havia mudado depois de 50 anos de seu belo samba-canção. Ele respondeu: de um lato tudo, do outro nada. O mesmo podemos dizer de Salvador. Nossa cidade se enfeou nesses 50 anos, mas suas marinhas imortalizadas por Pancetti e Mendonça Filho, cantadas por Caymmi, Vinicius e Mirian Fraga mudaram pouco. Ainda conserva seu por de sol sobre o mar, privilégio da costa do Pacifico, ilhas do Caribe e da Florida, nas Américas. Mas perdeu grande parte de seu coqueiral, as velas de seus saveiros, a transparência de suas aguas. Está perdendo, ainda, seus miradores públicos e ameaçada de ser dividida por uma ponte inútil e ter sua orla atlântica “destombada” pelo IPHAN, sem consulta à comunidade.

A estabilidade climática de Salvador, com sua temperatura média de 26º, teve uma semana atípica entre 3 e 8 deste mês, com temperatura mínima de 17º, muita chuva, ventos de 58 km/hora e ondas de 3 m. Uma tempestade sem raios. Por sorte nenhum naufrágio ou afogamento. Já vivi em países frios e gosto das trocas de estações. A vegetação mudas de cor, as pessoas trocam o vestiário e o humor, e a vida tem um ritmo. A mesmice climática dos trópicos é monótona e preguiçosa. Mas as tempestades mudam a cor do mar, a arrebentação das ondas e seus frequentadores: surfistas e gaivotas.

Por isso, a semana atrasada foi para mim uma festa. Fui ver, debaixo de chuva, o mar no Rio Vermelho e no Morro do Ipiranga, para sentir a força da natureza. O céu e o mar eram cinza, mas perto da praia o mar exibia um verde-paris lindo. As ondas explodiam contra os rochedos e viravam espuma no ar, exalando maresia. A tempestade de julho me fez voltar à infância. Naquela época, depois da cobertura dos espelhos para seu aço não atrair os raios, as rezas e a queima da palha benta de Ramos, vinha a cantoria: “Santa Clara clareou, são Domingos alumiou, vem sol, vai chuva pra enxugar o meu lençol”.

Nós, os filhos, ouvindo os silvos do vento nas três mangueiras que envolviam nossa casa, juntávamos nossas camas e armávamos uma barraca com os lençóis e nos enrolávamos em cobertores para nos sentirmos abrigados como se estivéssemos a salvos do dilúvio, na arca de Noé. Os raios não nos causavam medo, senão curiosidade, depois que meu pai nos ensinou que podíamos calcular a que distancia eles caiam contando os segundos que separavam o relâmpago do trovão. Pela manhã, víamos pelas vidraças embaçadas o jardim coberto de mangas verdes e galhos partidos e ficávamos alegres porque não haveria aula.

Senhores conselheiros do IPHAN não permitam que a tempestade imobiliária, que já derrubou dois ministros, transforme a nossa orla atlântica em uma Dubai subdesenvolvida, acanhada e banhada de salmoura.

SSA: A Tarde, 16/07/17


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