Artigos de Jornal
A tempestade
Assisti, há alguns anos, uma entrevista de Braguinha sobre a sua ode a
Copacabana, em que o repórter perguntava o que havia mudado depois de 50 anos de
seu belo samba-canção. Ele respondeu: de um lato tudo, do outro nada. O mesmo
podemos dizer de Salvador. Nossa cidade se enfeou nesses 50 anos, mas suas
marinhas imortalizadas por Pancetti e Mendonça Filho, cantadas por Caymmi,
Vinicius e Mirian Fraga mudaram pouco. Ainda conserva seu por de sol sobre o
mar, privilégio da costa do Pacifico, ilhas do Caribe e da Florida, nas
Américas. Mas perdeu grande parte de seu coqueiral, as velas de seus saveiros, a
transparência de suas aguas. Está perdendo, ainda, seus miradores públicos e
ameaçada de ser dividida por uma ponte inútil e ter sua orla atlântica
“destombada” pelo IPHAN, sem consulta à comunidade.
A estabilidade climática de Salvador, com sua temperatura média de 26º, teve uma
semana atípica entre 3 e 8 deste mês, com temperatura mínima de 17º, muita
chuva, ventos de 58 km/hora e ondas de 3 m. Uma tempestade sem raios. Por sorte
nenhum naufrágio ou afogamento. Já vivi em países frios e gosto das trocas de
estações. A vegetação mudas de cor, as pessoas trocam o vestiário e o humor, e a
vida tem um ritmo. A mesmice climática dos trópicos é monótona e preguiçosa. Mas
as tempestades mudam a cor do mar, a arrebentação das ondas e seus
frequentadores: surfistas e gaivotas.
Por isso, a semana atrasada foi para mim uma festa. Fui ver, debaixo de chuva, o
mar no Rio Vermelho e no Morro do Ipiranga, para sentir a força da natureza. O
céu e o mar eram cinza, mas perto da praia o mar exibia um verde-paris lindo. As
ondas explodiam contra os rochedos e viravam espuma no ar, exalando maresia. A
tempestade de julho me fez voltar à infância. Naquela época, depois da cobertura
dos espelhos para seu aço não atrair os raios, as rezas e a queima da palha
benta de Ramos, vinha a cantoria: “Santa Clara clareou, são Domingos alumiou,
vem sol, vai chuva pra enxugar o meu lençol”.
Nós, os filhos, ouvindo os silvos do vento nas três mangueiras que envolviam
nossa casa, juntávamos nossas camas e armávamos uma barraca com os lençóis e nos
enrolávamos em cobertores para nos sentirmos abrigados como se estivéssemos a
salvos do dilúvio, na arca de Noé. Os raios não nos causavam medo, senão
curiosidade, depois que meu pai nos ensinou que podíamos calcular a que
distancia eles caiam contando os segundos que separavam o relâmpago do trovão.
Pela manhã, víamos pelas vidraças embaçadas o jardim coberto de mangas verdes e
galhos partidos e ficávamos alegres porque não haveria aula.
Senhores conselheiros do IPHAN não permitam que a tempestade imobiliária, que já
derrubou dois ministros, transforme a nossa orla atlântica em uma Dubai
subdesenvolvida, acanhada e banhada de salmoura.
SSA: A Tarde, 16/07/17