Artigos de Jornal
Os não-lugares de Salvador
A Academia de Letras da Bahia vem realizando mesas-redondas sobre temas
contemporâneos, como parte das comemorações do seu centenário. Uma delas,
realizada em 24 do último mês, foi sobre a venda pelo pernambucano Cardeal da
Silva e o cearense Juracy Magalhães da igreja da Sé, por trezentos contos de
reis, à americana Linha Circular. A motivação imediata do evento foi o
lançamento do belo filme de Jacira Oswald inspirado no livro de Fernando Peres
sobre a demolição da sede do maior bispado do mundo, que se estendia a todo o
Brasil e à África lusa.
Um dos palestrantes, o professor Nivaldo Andrade Jr., levantou a questão do
vácuo resultante daquela demolição e de mais dois quarteirões, que foi terminal
de bondes, de ônibus e a partir de 1999 memorial subterrâneo da Sé e fonte
luminosa, mas nunca conseguiu ser um espaço de convivência social. Ele é apenas
um vazio entre a praça Municipal, do poder civil, e o Terreiro, do poder
religioso. Aquele foi o primeiro não-lugar de Salvador, conceito adotado pelo
antropólogo Marc Augé, que o define como um espaço de passagem incapaz de dar
forma a qualquer identidade.
Dada a partida, nossos administradores criaram outros não-lugares, como o
Cemitério do Sucupira, de 1974, resultante da demolição da Imprensa Oficial,
Biblioteca Pública e do antigo fórum, na praça Municipal. O povo sabiamente
apelidou aquele tabuleiro como necrotério, porque o prefeito Clériston Andrade,
envergonhado, adiou quanto pode sua inauguração, como na novela da Dias Gomes.
Ali não foi criado apenas um não-lugar, senão deformada a praça Municipal
vizinha, com a meia volta que foi dada a seu eixo, que Luiz Dias sensatamente
havia dirigido para a Baia de Todos os Santos.
Quando o prefeito Mário Kertesz foi impedido por ACM de transferir o Executivo
Municipal para o desocupado palácio Rio Branco, ele pediu a Lelé que armasse um
palácio provisório naquele local. O palácio Tomé de Souza não conseguiu
preencher o vazio do cemitério, mas o arquiteto colocou em seu teto um canhão
apontando para o Rio Branco, em homenagem a Seabra. A antiga Estrada da Rainha
virou outro não-lugar que para se atravessar seria preciso pegar dois
elevadores, que não foram instalados.
O pulmão da Paralela, compartido nas primeiras horas da manhã e nos finais de
tarde, pelo zé-povinho do Miolo de Salvador e mauricinhos dos condomínios
fechados da Orla, foi transformado no maior não-lugar do país e uma barreira de
13 km. O que restou das trilhas de cooper e de milhares de arvores do antigo
bulevar? A ferrovia do Litoral Norte, com suas carapaças de tatus infladas,
transformou o parque da Paralela numa terra-de-ninguém. São as empreiteiras que
plasmam esta cidade dos não-lugares, dos viadutos engarrafados e da exclusão
social.
SSA: A Tarde de 10/09/17