Artigos de Jornal
A Universidade vista do Tijolo
Em meados da década de 50, a UFBA consolidava-se como o principal centro de
criação e de ensino das artes no país. Edgard Santos, seu criador, membro de uma
das famílias mais tradicionais baianas, tinha as qualidades de um grande
empreendedor: a ambição, o senso de oportunidade e a coragem de um jogador.
Compreendeu que não bastava fundir velhas escolas, era preciso criar uma
universidade com uma cara própria.
Mário Cravo e Carlos Bastos escandalizavam Salvador com seus exus, Cristos e
anjos pelados, em prontidão. A Polícia estourava o “Anjo Azul” de José Pedreira,
réplica dos bares existencialistas, onde rolava não só a vã filosofia. Anísio
Teixeira preparava, com obstinação jesuítica, a revolução pela educação, com a
complacência de Otávio Mangabeira. Walter da Silveira, no Club de Cinema,
decodificava para uma platéia embevecida pelos melodramas hollywoodianos os
corrosivos celuloides neo-realistas europeus.
A nova universidade não só encampou esse movimento como o ampliou, atraindo para
a Bahia outros grupos de vanguarda, como os Seminários Livres de Música,
iniciados por Koellrueter em Teresópolis, o teatro experimental de Martim
Gonçalves, a dança moderna de Janka Rudzka.
Edgard Santos foi um precursor genial do “marketing cultural”. Certa vez afirmou
que a inauguração do Hospital das Clínicas, que lhe consumira rios de dinheiro e
anos de trabalho, rendera-lhe minguadas linhas nos jornais do Sul, enquanto uma
excursão da Orquestra Sinfônica, do Madrigal ou do Grupo Teatral Santo Antônio,
enchia suplementos inteiros do Jornal do Brasil, do Estadão e de O Cruzeiro.
Seu vanguardismo não excluía o barroquismo baiano das solenidades pomposas com
oradores prolixos, distribuição de títulos e regalos e encerramentos com lautos
banquetes. Para que tais solenidades tivessem mais brilho, mandou construir uma
reitoria neocolonial revestida de mármores, azulejos e reposteiros portugueses.
Entre outros eventos famosos patrocinados pela UFBA, à época, ficou célebre o
III Colóquio Luso-Brasileiro.
Com essa dupla estratégia, Edgard Santos colocou a UFBA no segundo lugar do
“ranking” dos orçamentos universitários federais, só atrás da Universidade do
Brasil. Mas sua predileção pelas novas escolas provocava ciúmes das antigas e
protestos do alunato politizado, que cobrava uma universidade mais
instrumentadora e menos contemplativa.
Foi nesse momento de intensa produção cultural e contestação política, o mais
fecundo da UFBA, que ingressei no recém-criado Curso de Arquitetura da Escola de
Belas Artes. Ninguém sabe por que Edgard Santos preferiu incorporar a velha
escola da Rua do Tijolo à UFBA, ao invés de criar uma nova. Belas Artes era uma
escola de nível médio, profundamente conservadora, com professores velhos e
instalações precárias, localizada literalmente no mangue.
Possuía, porém, um prestigioso tríptico de pintores–professores com sólida
formação europeia - Prisciliano Silva, Alberto Valença e Mendonça Filho -
figuras de proa da pintura na primeira metade do século XX. O reitor indicou
Mendonça para soerguer a velha escola. Mendonça mostrou-se dinâmico e aberto,
atraindo para Belas Artes os melhores professores da Escala Politécnica e das
faculdades de Filosofia e Direito. Em campos que não conhecia como a Arquitetura
e o Urbanismo, Mendonça Filho fez-se orientar-se por professores com experiência
comprovada, como Diógenes Rebouças e Admar Guimarães, baluartes do EPUCS. Mandou
vir outros do Sul, como os arquitetos Bina Fonyat Filho, Fernando Machado Leal e
o gravador Henrique Oswald.
Não obstante este esforço, o Curso de Arquitetura tinha as falhas de um curso
sem tradição, com poucos profissionais do campo. Mas o convívio com mestres e
alunos de Belas Artes era enriquecedor. Alberto Valença passava todo o tempo na
escola matando sua solidão de viúvo fiel e ensinando-nos os segredos da curva,
da luz, das cores, das sombras, das proporções do corpo humano. Só mais tarde
vim a descobrir que não existem fronteiras entre as artes plásticas.
O isolamento e a pacatez da escola foram repentinamente rompidos por dois fatos,
que nos lançaram na linha de fogo da UFBA. Primeiro, a presença de Lina Bo
Bardi, cujas concepções revolucionárias de arte iriam estremecer a velha escola
e galvanizar as atenções das demais, atraindo para suas conferências polêmicas
figuras como Mário Cravo Jr., Martim Gonçalves, Glauber Rocha, Paulo Gil Soares
e Romano Galeffi, seu ferrenho opositor. Tive a sorte de ser um dos seus alunos
no único curso universitário que lecionou no Brasil.
O segundo fato foi o movimento estudantil pela emancipação do Curso de
Arquitetura, seguindo tendência mundial, que seria engrossado com a adesão de
outras unidades, algumas com legitimas aspirações, outras com velhos
ressentimentos. O movimento, em sua origem exclusivamente acadêmico, se
transformaria em um “imbróglio” político e ideológico com a intervenção de
velhos caciques e emergentes gurus temerosos da ascensão de Edgard Santos ao
governo do Estado.
Edgard Santos cairia, dois anos depois, e a UFBA entraria em uma lenta
acomodação. Nossa geração, que o contestou de forma dura, mas leal e
desinteressada na busca de uma UFBA mais universal, é a primeira a reconhecer a
grandeza de sua obra e tem o compromisso de lutar pela sua reconstrução, neste
momento difícil por que passa a Universidade Brasileira.
SSA: A Tarde de 08/10/1996. Republicado em BOAVENTURA, Edivaldo (Org)
UFBA: trajetória de uma universidade, 1946-1996. SSA: 1999