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A Universidade vista do Tijolo

  • 08 de Outubro de 1996

Em meados da década de 50, a UFBA consolidava-se como o principal centro de criação e de ensino das artes no país. Edgard Santos, seu criador, membro de uma das famílias mais tradicionais baianas, tinha as qualidades de um grande empreendedor: a ambição, o senso de oportunidade e a coragem de um jogador. Compreendeu que não bastava fundir velhas escolas, era preciso criar uma universidade com uma cara própria.

Mário Cravo e Carlos Bastos escandalizavam Salvador com seus exus, Cristos e anjos pelados, em prontidão. A Polícia estourava o “Anjo Azul” de José Pedreira, réplica dos bares existencialistas, onde rolava não só a vã filosofia. Anísio Teixeira preparava, com obstinação jesuítica, a revolução pela educação, com a complacência de Otávio Mangabeira. Walter da Silveira, no Club de Cinema, decodificava para uma platéia embevecida pelos melodramas hollywoodianos os corrosivos celuloides neo-realistas europeus.

A nova universidade não só encampou esse movimento como o ampliou, atraindo para a Bahia outros grupos de vanguarda, como os Seminários Livres de Música, iniciados por Koellrueter em Teresópolis, o teatro experimental de Martim Gonçalves, a dança moderna de Janka Rudzka.

Edgard Santos foi um precursor genial do “marketing cultural”. Certa vez afirmou que a inauguração do Hospital das Clínicas, que lhe consumira rios de dinheiro e anos de trabalho, rendera-lhe minguadas linhas nos jornais do Sul, enquanto uma excursão da Orquestra Sinfônica, do Madrigal ou do Grupo Teatral Santo Antônio, enchia suplementos inteiros do Jornal do Brasil, do Estadão e de O Cruzeiro.

Seu vanguardismo não excluía o barroquismo baiano das solenidades pomposas com oradores prolixos, distribuição de títulos e regalos e encerramentos com lautos banquetes. Para que tais solenidades tivessem mais brilho, mandou construir uma reitoria neocolonial revestida de mármores, azulejos e reposteiros portugueses. Entre outros eventos famosos patrocinados pela UFBA, à época, ficou célebre o III Colóquio Luso-Brasileiro.

Com essa dupla estratégia, Edgard Santos colocou a UFBA no segundo lugar do “ranking” dos orçamentos universitários federais, só atrás da Universidade do Brasil. Mas sua predileção pelas novas escolas provocava ciúmes das antigas e protestos do alunato politizado, que cobrava uma universidade mais instrumentadora e menos contemplativa.

Foi nesse momento de intensa produção cultural e contestação política, o mais fecundo da UFBA, que ingressei no recém-criado Curso de Arquitetura da Escola de Belas Artes. Ninguém sabe por que Edgard Santos preferiu incorporar a velha escola da Rua do Tijolo à UFBA, ao invés de criar uma nova. Belas Artes era uma escola de nível médio, profundamente conservadora, com professores velhos e instalações precárias, localizada literalmente no mangue.

Possuía, porém, um prestigioso tríptico de pintores–professores com sólida formação europeia - Prisciliano Silva, Alberto Valença e Mendonça Filho - figuras de proa da pintura na primeira metade do século XX. O reitor indicou Mendonça para soerguer a velha escola. Mendonça mostrou-se dinâmico e aberto, atraindo para Belas Artes os melhores professores da Escala Politécnica e das faculdades de Filosofia e Direito. Em campos que não conhecia como a Arquitetura e o Urbanismo, Mendonça Filho fez-se orientar-se por professores com experiência comprovada, como Diógenes Rebouças e Admar Guimarães, baluartes do EPUCS. Mandou vir outros do Sul, como os arquitetos Bina Fonyat Filho, Fernando Machado Leal e o gravador Henrique Oswald.

Não obstante este esforço, o Curso de Arquitetura tinha as falhas de um curso sem tradição, com poucos profissionais do campo. Mas o convívio com mestres e alunos de Belas Artes era enriquecedor. Alberto Valença passava todo o tempo na escola matando sua solidão de viúvo fiel e ensinando-nos os segredos da curva, da luz, das cores, das sombras, das proporções do corpo humano. Só mais tarde vim a descobrir que não existem fronteiras entre as artes plásticas.

O isolamento e a pacatez da escola foram repentinamente rompidos por dois fatos, que nos lançaram na linha de fogo da UFBA. Primeiro, a presença de Lina Bo Bardi, cujas concepções revolucionárias de arte iriam estremecer a velha escola e galvanizar as atenções das demais, atraindo para suas conferências polêmicas figuras como Mário Cravo Jr., Martim Gonçalves, Glauber Rocha, Paulo Gil Soares e Romano Galeffi, seu ferrenho opositor. Tive a sorte de ser um dos seus alunos no único curso universitário que lecionou no Brasil.

O segundo fato foi o movimento estudantil pela emancipação do Curso de Arquitetura, seguindo tendência mundial, que seria engrossado com a adesão de outras unidades, algumas com legitimas aspirações, outras com velhos ressentimentos. O movimento, em sua origem exclusivamente acadêmico, se transformaria em um “imbróglio” político e ideológico com a intervenção de velhos caciques e emergentes gurus temerosos da ascensão de Edgard Santos ao governo do Estado.

Edgard Santos cairia, dois anos depois, e a UFBA entraria em uma lenta acomodação. Nossa geração, que o contestou de forma dura, mas leal e desinteressada na busca de uma UFBA mais universal, é a primeira a reconhecer a grandeza de sua obra e tem o compromisso de lutar pela sua reconstrução, neste momento difícil por que passa a Universidade Brasileira.


SSA: A Tarde de 08/10/1996. Republicado em BOAVENTURA, Edivaldo (Org)
UFBA: trajetória de uma universidade, 1946-1996. SSA: 1999


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