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No meio do caminho tinha uma pedra...
Em 1928 um rapaz desconhecido de 26 anos do interior do país enviou para uma
revista maldita de São Paulo um poemeto sem métrica nem rima e cheio de
repetições, que o redator-chefe da revista, Antônio Alcântara Machado, num
lampejo de premunição, o estampou na capa.
“No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho
Tinha uma pedra -
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho/
No meio do caminho tinha uma pedra”.
O jovem se chamava Carlos Drummond de Andrade e só iria publicar seu primeiro
livro, “Alguma poesia”, dois anos depois e a revista era Antropofagia. De
imediato não houve grande reação ao poema, mas quando Drummond assume, em 1934,
a chefia de gabinete do ministro Gustavo Capanema da Educação e Saúde, ele é
chamado de idiota e imbecil. Em meio a centenas de poemas igualmente polêmicos,
que se publicava na época, esse foi objeto de uma saraivada de críticas raivosas
de gramáticos e críticos literários conservadores que lhe acusavam de cometer
erros gramaticais, como o uso de verbo “ter” em lugar de “haver” e a repetição a
exaustão da mesma frase. Sem se perturbar, o poeta incluiu o poema em seu
primeiro livro, sem nenhuma alteração.]
Comentaria mais tarde com humildade: “Como podia eu imaginar que um texto
insignificante, um jogo monótono, deliberadamente monótono, de palavras causasse
tanta irritação, não só nos meios literários como ainda na esfera da
administração, envolvendo seu autor numa atmosfera de escárnio?” Ele sabia que
no português popular, o verbo ”ter” é sinônimo de “haver”, “porque ele (o povo)
é que fala gostoso o português do Brasil/ Ao passo que nós/ O que fazemos/ É
macaquear/A sintaxe lusíada”, como dizia Manuel Bandeira em Evocação do Recife.
Para a crítica séria, o poema retrata o desapontamento do autor, e de todos nós,
diante de acontecimentos que nos impedem de seguir nosso caminho. A repetição
monótona do primeiro verso é a reverberação dessa frustração. Em 1968, no
aniversário de 40 anos do poema, Drummond, já autor consagrado, se vinga de seus
críticos, publicando “Uma pedra no meio do caminho – Biografia de um poema”.
Este ano, ao comemorar 90 anos do poema, o Instituto Moreira Salles reeditou o
libro de 1968 ampliado pelo tesouro crítico recente e gravou a recitação do
poema nas 12 mais importantes línguas, inclusive o latim. Vide: https://www.letras.mus.br/carlos-drummond-de-andrade/807509/
.Poema que é hoje considerado não apenas um dos mais importantes da língua
portuguesa como de toda a literatura mundial. Tinha uma pedra no meio do
caminho/ Tinha uma pedra...
SSA: A Tarde de 04/11/2018