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A sutil relação entre poesia e canção

  • 10 de Março de 2019

Alguns poetas ciosos de sua arte, dizem que letras de canções não são poemas, mas obras lúdicas, de folk. Assim, o verso “tu pisavas nos astros distraída” de Orestes Barbosa em “Chão de estrelas”, considerado por Bandeira o mais belo da nossa língua e “As rosas não falam” de Cartola seriam textos menores. Esquecem eles que na Grécia a poesia era acompanhada pela “lira”, instrumento que ainda hoje simboliza a arte poética. A poesia provençal e ibérica medieval nasceu de cantigas trovadolescas de jograis, tradição que se mantem no Nordeste com os cantadores e repentistas acompanhados de viola e rabeca.

Dirão aqueles poetas que o tempo é outro. Pode ser, mas tenho dúvidas. Acho que a poesia cantada está tão viva hoje quanto foi no passado. Poesia e música são irmãs. A associação não é nova, Catulo da Paixão Cearense (1863-1946) foi autor de uma dezena de livros de poesia elogiados por Júlio Dinis e Machado e violonista virtuoso de cantigas como Luar no Sertão e Flor amorosa. Aliás, no inglês as letras de canções são lyrics e por elas Bob Dylan ganhou o Nobel.

Mais próximos de nós estão letristas como Vinicius de Moraes, que compôs com Tom Jobim, Toquinho e Carlos Lyra; Capinan é parceiro de João Bosco, Gil, Edu Lobo e Moraes Moreira; Paulo Leminski compôs com Caetano, M. Moreira, Paulinho Boca e Zeca Baleiro; Antônio Cícero, da ABL, compõe com a cantora e irmã Marina Lima. Poderia ainda citar João Cabral de Melo Neto letrista de “Enterro de Lavrador” de Chico; Ferreira Goulart de “Traduzir-se” em coautoria com Caetano e “O bicho homem” de Francisco Carvalho musicado por Fagner.

Interessante são parcerias póstumas como a de Renato Russo com São Paulo, de Coríntios, e Camões do Soneto 11, na canção Monte Castelo; Frejat em “Amor para recomeçar”, inspirado no poema de Victor Hugo “Desejo”, e os poemas “Patrão nosso de cada dia” e “Qualquer música” de Fernando Pessoa musicados respetivamente por João Ricardo, de Secos e Molhados, e Fagner, que fez também interpretações lindas de “Fanatismo”, “Tortura” e “Fumo” da portuguesa Florbela Espanca. Dos brasileiros posso citar Bandeira de “Vou-me embora pra Pasárgada” e “E agora José”, musicados por Paulo Diniz, e os poemas de “Estrela da vida Inteira” no álbum de Olivia Hime interpretados pelos maiores compositores brasileiros e Cecilia Meireles de “Motivo” citado por Fagner em sua bela canção “Canteiros”, que deu muito que falar. Há também músicas que receberam versos depois da morte de seus autores, como “Gente humilde” de Garoto, com letra de Vinícius de Morais, e “Doce de coco” e “Noites cariocas” de Jacob do Bandolim com versos de Hermínio Bello de Carvalho.

Nesses casos, em que não houve uma interação do poeta com o músico, senão uma interpretação à posteriori, pode-se dizer que é uma obra derivada, mas não menos importante. Poemas antigos renascem nessas canções e são salvos do esquecimento.

SSA: A Tarde, 10/03/19


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