Artigos de Jornal
Músico da forma e do concreto
O instituto Lina Bo e P.M. Bardi, que vem produzindo cuidadas
monografias sobre os nossos arquitetos maiores, acaba de lançar “João Filgueiras
Lima: Lelé”. Trata-se de um song book da obra do arquiteto, com uma longa
entrevista dada a Roberto Pinho e Marcelo Ferraz. Talvez a maioria dos baianos
não saiba de quem se trata, mas não lhe passam despercebidos equipamentos
urbanos como bancos e abrigos de argamassa armada, escolas pré-fabricadas e
aranhas gigantes que tecem os nós da rede de avenidas de vale, em cujas veias
correm colegiais, sôfregos camelôs, apressados ciclistas e carrinhos de picolé e
cafezinho, transformando o sobressalto da travessia das avenidas indóceis em uma
caminhada descontraída e lúdica, por sobre carros e caminhões fumegantes.
Os baianos não são também indiferentes aos edifícios que serpenteiam no dorso
das colinas do Centro Administrativo, ou uma rosa de concreto, cujas pétalas em
espiral buscam a luz em meio a um dos últimos fragmentos de mata urbana, a
capela do Senhor da Ascensão, e uma enorme oca colorida, que abriga os cartórios
do Tribunal Regional Eleitoral.
Seu autor, um carioca boêmio que aprendeu na solidão do cerrado e do drama de
saúde da filha a resolver compulsivamente os esquemáticos croquis de seu mestre
Oscar Niemeyer, para pô-los em pé ao ritmo dos 50 anos em 5 da construção de
Brasília e nunca tem tempo para colher os louros ou lustrar o ego. Folga apenas
com a satisfação dos usuários anônimos que cochilam preguiçosamente em seus
bancos, suspiram com a travessia de avenidas em passarelas cobertas, esperam
ônibus sentados em seus abrigos, ou respiram aliviados com suas escadas
drenantes e lixo-dutos. Lelé não é apenas um projetista, senão um construtor, um
profissional que não abre mão de conduzir todo o processo de produção do
edifício e que tocado pela urgência herdada de Juscelino Kubitschek e de Darcy
Ribeiro de resgatar a história, não vê outra solução para a nossos desafios
urbanos senão a industrialização da habitação e dos equipamentos sociais.
Foi nesta cidade do Salvador, com colaboradores locais, e em precárias empresas
municipais que ajudou a criar, na administração do prefeito Mário Kertész, como
a Renurb e a Fábrica de Equipamentos Comunitários (Faec), que ele selou seu
compromisso de humanizar nossas periferias urbanas tratando pedestres, pingentes
e excluídos como gente, ao construir canais de drenagem, abrigos, escadarias e
escolas com kits de argamassa armada montados como brinquedos em favelas,
encostas e alagados, onde não podiam chegar tratores nem betoneiras.
Impossibilitado de continuar seu trabalho na Salvador que adotou, expandiu sua
atuação para outros estados. Todas as vezes que caía uma administração em que
trabalhava, Lelé pedia o boné, buscava emprego e começava tudo de novo. Assim,
nosso construtor andarilho fundou fábricas de refazer cidades na Bahia, Goiás,
sob o agasalho da pastoral do Frei Matheus, no Rio de Janeiro, onde reencontrou
Darcy Ribeiro, e de novo na Bahia, em 1991, quando convenceu Aloysio Campos da
Paz a construir o hospital Sarah Salvador. Aqui, depois de apanhar tanto, só
mesmo “privado de sentidos e de bom senso”, como diria Manuel Bandeira sobre a
tragédia cotidiana, seria capaz do gesto tresloucado de criar mais uma dessas
fábricas, o Centro de Tecnologia da Rede Sarah (CTRS), para produzir hospitais e
outros equipamentos públicos com altíssima tecnologia.
Em apenas cinco anos, entre 1992 e 1997, sob o comando de Lelé, o CTRS produziu
em Salvador e exportou três hospitais da Rede Sarah com todo seu mobiliário
especializado – Fortaleza, Belo Horizonte e Lago Norte de Brasília – oito
Tribunais de Contas da União – Bahia, Sergipe, Alagoas, Rio Grande do Norte,
Piauí, Espírito Santo, Minas Gerais e Mato Grosso, - um centro comunitário em
São Luis do Maranhão, o Tribunal Regional Eleitoral da Bahia e inúmeras
passarelas. O desconforto produzido nas empreiteiras por tamanha eficiência e
velocidade, quando se leva em média cinco anos para construir um só hospital,
faria com que o Tribunal de Contas da União não renovasse o convênio das
Voluntárias Sociais com a Rede Sarah e o CTRS fosse desativado.
A mágica de Lelé era simples: resgatava a unidade do processo de projetação e
execução da obra pública, em um ambiente industrial, a serviço da comunidade e
não do lucro de empresas pouco qualificadas. Mas o que admira mesmo é a sua
mágica de desenvolver uma obra de alta qualidade técnica e estética em
instituições públicas sucateadas e em desmonte. Lelé fez toda a sua carreira no
setor público, não como um dócil barnabé ou burocrata carreirista, senão como um
empreendedor. Por isso foi semprei um estranho no ninho.
Lelé é um arquiteto de transição entre os pioneiros do modernismo no Brasil e a
geração atual, mas avesso aos modismos e à submissão ao mercado. Dos modernistas
guarda o compromisso social, a busca da racionalidade, as propostas dos
Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM). Dos organicistas,
especialmente dos finlandeses Alvar Alto e Arn Jacobsen, toma a flexibilidade
funcional, a integração interior-exterior e o apuro dos detalhes, enfim, a
humanização do edifício.
Embora reconheça em Niemeyer seu mestre, sua obra é conceitualmente diferente.
Herdou de Oscar o gosto pela curva e pela integração das artes. Mas Niemeyer é
um artista barroco, de formas escultóricas, monumentais e unitárias, enquanto
Lelé trabalha o edifício como uma composição, buscando harmonias e arranjos
novos de elementos estandardizados. Muitos de seus edifícios foram concebidos
expansíveis, atitude incompatível com a concepção unitária da forma
arquitetônica do mestre. Neste sentido, sua obra é muito mais dinâmica e
fenomenológica que a dos modernistas. O hospital Sarah de Brasília seria
ampliado sem romper sua unidade e o de Belo Horizonte aproveitaria um hospital
pré-existente em uma nova composição.
Esta maneira de compor e arranjar edifícios vem provavelmente de sua formação
musical. Lelé toca piano flauta, violão e acordeão e de sua proposta de uma
pré-fabricação aberta, em que os mesmos elementos podem ser usados para produção
de distintos programas e edifícios O fato é que Lelé não se acanha em usar
reiterativamente num mesmo projeto ou em diferentes edifícios, a mesma forma, a
exemplo dos sheds (coberturas), que quebram como ondas nos hospitais da rede
Sarah, e as ocas circulares presentes no Sarah Lago Norte de Brasília, Tribunal
Regional Eleitoral da Bahia e projeto da Fundação Darcy Ribeiro. Isto não é uma
novidade, nem diminui seu mérito. Os arquitetos classicistas sempre utilizaram o
mesmo repertório formal – ordens clássicas, abobadas e cúpulas – em composições
variadas. E não são diferentes os modernistas, com os pilotis, as fachadas de
vidro e os terraços-jardins.
A forma arquitetônica de Lelé nasce de motivações endógenas de caráter
funcional, espacial e estrutural, como na maioria dos organicistas. Essa
introspecção explica, de uma parte, sua estética e espacialidade particulares,
com interiores diáfanos, onde a luz e o ar jorram dos tetos, e de outra, a
unicidade de sua obra, independente do contexto urbano que a envolve. Na
verdade, sua obra na futurística Brasília ou na tradicional Salvador, não
diferem muito. Lelé dominou progressivamente o concreto pré-fabricado, a
argamassa armada e o treliçado metálico, até chegar a atual liberdade de plasmar
e produzir o espaço em função do uso social, da luz, do vento e da poesia.
Em qualquer parte do mundo, seus atributos e obras o tornariam uma cabeça
disputada por ambiciosos prefeitos, governadores e os mais altos escalões
nacionais. No Brasil, os nossos preclaros dirigentes políticos ordenaram fechar
todas as cinco fabricas de refazer cidades, com enorme prejuízo para a população
e seu criador seria literalmente fired (demitido/fritado). Não conseguiram,
porém, destruir sua obra consagrada popular e internacionalmente. Lelé está mais
uma vez com o pé na estrada, disposto a reconstruir tudo de novo, desde que
encontre alguém interessado. Até quando?
Caderno Cultural de A Tarde, de 15/07/1969
DES/CONSTRUÇÃO
Paulo Ormindo de Azevedo
A Lelé
Definir o limitado espaço
Espreitando o sol e o vento.
Imaginar uma frondosa copa
Marcando ritmicamente o traço.
Buscar no chão o fundamento
E do saibro e da cal o traço.
Armar a plástica argamassa
Com engenho, metal e cimento.
Fundir a forma na fôrma vazada,
Remover o elevado cimbre
E sentir da placa o timbre,
Vibrando a cada passada.
Domar água, vento e geada,
Filtrar a cor no clarão do mormaço,
Decompondo luz, matéria e espaço,
Para recriar plenamente o nada
ARGAMASSA ARMADA
A Lelé
Achar no chão o fundamento
E no saibro e na cal o traço.
Armar a plástica argamassa
Com engenho, ferro e cimento.
Fundir a peça na fôrma vazada
Remover o elevado cimbre
E ouvir da placa o timbre,
Ecoando a cada passada.
Armar os painéis num cio
Recobrir de vez o espaço,
Filtrar a luz do mormaço
Para recriar pleno o vazio