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Músico da forma e do concreto

  • 15 de Julho de 2000

 O instituto Lina Bo e P.M. Bardi, que vem produzindo cuidadas monografias sobre os nossos arquitetos maiores, acaba de lançar “João Filgueiras Lima: Lelé”. Trata-se de um song book da obra do arquiteto, com uma longa entrevista dada a Roberto Pinho e Marcelo Ferraz. Talvez a maioria dos baianos não saiba de quem se trata, mas não lhe passam despercebidos equipamentos urbanos como bancos e abrigos de argamassa armada, escolas pré-fabricadas e aranhas gigantes que tecem os nós da rede de avenidas de vale, em cujas veias correm colegiais, sôfregos camelôs, apressados ciclistas e carrinhos de picolé e cafezinho, transformando o sobressalto da travessia das avenidas indóceis em uma caminhada descontraída e lúdica, por sobre carros e caminhões fumegantes.
Os baianos não são também indiferentes aos edifícios que serpenteiam no dorso das colinas do Centro Administrativo, ou uma rosa de concreto, cujas pétalas em espiral buscam a luz em meio a um dos últimos fragmentos de mata urbana, a capela do Senhor da Ascensão, e uma enorme oca colorida, que abriga os cartórios do Tribunal Regional Eleitoral.
Seu autor, um carioca boêmio que aprendeu na solidão do cerrado e do drama de saúde da filha a resolver compulsivamente os esquemáticos croquis de seu mestre Oscar Niemeyer, para pô-los em pé ao ritmo dos 50 anos em 5 da construção de Brasília e nunca tem tempo para colher os louros ou lustrar o ego. Folga apenas com a satisfação dos usuários anônimos que cochilam preguiçosamente em seus bancos, suspiram com a travessia de avenidas em passarelas cobertas, esperam ônibus sentados em seus abrigos, ou respiram aliviados com suas escadas drenantes e lixo-dutos. Lelé não é apenas um projetista, senão um construtor, um profissional que não abre mão de conduzir todo o processo de produção do edifício e que tocado pela urgência herdada de Juscelino Kubitschek e de Darcy Ribeiro de resgatar a história, não vê outra solução para a nossos desafios urbanos senão a industrialização da habitação e dos equipamentos sociais.
Foi nesta cidade do Salvador, com colaboradores locais, e em precárias empresas municipais que ajudou a criar, na administração do prefeito Mário Kertész, como a Renurb e a Fábrica de Equipamentos Comunitários (Faec), que ele selou seu compromisso de humanizar nossas periferias urbanas tratando pedestres, pingentes e excluídos como gente, ao construir canais de drenagem, abrigos, escadarias e escolas com kits de argamassa armada montados como brinquedos em favelas, encostas e alagados, onde não podiam chegar tratores nem betoneiras.
Impossibilitado de continuar seu trabalho na Salvador que adotou, expandiu sua atuação para outros estados. Todas as vezes que caía uma administração em que trabalhava, Lelé pedia o boné, buscava emprego e começava tudo de novo. Assim, nosso construtor andarilho fundou fábricas de refazer cidades na Bahia, Goiás, sob o agasalho da pastoral do Frei Matheus, no Rio de Janeiro, onde reencontrou Darcy Ribeiro, e de novo na Bahia, em 1991, quando convenceu Aloysio Campos da Paz a construir o hospital Sarah Salvador. Aqui, depois de apanhar tanto, só mesmo “privado de sentidos e de bom senso”, como diria Manuel Bandeira sobre a tragédia cotidiana, seria capaz do gesto tresloucado de criar mais uma dessas fábricas, o Centro de Tecnologia da Rede Sarah (CTRS), para produzir hospitais e outros equipamentos públicos com altíssima tecnologia.
Em apenas cinco anos, entre 1992 e 1997, sob o comando de Lelé, o CTRS produziu em Salvador e exportou três hospitais da Rede Sarah com todo seu mobiliário especializado – Fortaleza, Belo Horizonte e Lago Norte de Brasília – oito Tribunais de Contas da União – Bahia, Sergipe, Alagoas, Rio Grande do Norte, Piauí, Espírito Santo, Minas Gerais e Mato Grosso, - um centro comunitário em São Luis do Maranhão, o Tribunal Regional Eleitoral da Bahia e inúmeras passarelas. O desconforto produzido nas empreiteiras por tamanha eficiência e velocidade, quando se leva em média cinco anos para construir um só hospital, faria com que o Tribunal de Contas da União não renovasse o convênio das Voluntárias Sociais com a Rede Sarah e o CTRS fosse desativado.
A mágica de Lelé era simples: resgatava a unidade do processo de projetação e execução da obra pública, em um ambiente industrial, a serviço da comunidade e não do lucro de empresas pouco qualificadas. Mas o que admira mesmo é a sua mágica de desenvolver uma obra de alta qualidade técnica e estética em instituições públicas sucateadas e em desmonte. Lelé fez toda a sua carreira no setor público, não como um dócil barnabé ou burocrata carreirista, senão como um empreendedor. Por isso foi semprei um estranho no ninho.
Lelé é um arquiteto de transição entre os pioneiros do modernismo no Brasil e a geração atual, mas avesso aos modismos e à submissão ao mercado. Dos modernistas guarda o compromisso social, a busca da racionalidade, as propostas dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM). Dos organicistas, especialmente dos finlandeses Alvar Alto e Arn Jacobsen, toma a flexibilidade funcional, a integração interior-exterior e o apuro dos detalhes, enfim, a humanização do edifício.
Embora reconheça em Niemeyer seu mestre, sua obra é conceitualmente diferente. Herdou de Oscar o gosto pela curva e pela integração das artes. Mas Niemeyer é um artista barroco, de formas escultóricas, monumentais e unitárias, enquanto Lelé trabalha o edifício como uma composição, buscando harmonias e arranjos novos de elementos estandardizados. Muitos de seus edifícios foram concebidos expansíveis, atitude incompatível com a concepção unitária da forma arquitetônica do mestre. Neste sentido, sua obra é muito mais dinâmica e fenomenológica que a dos modernistas. O hospital Sarah de Brasília seria ampliado sem romper sua unidade e o de Belo Horizonte aproveitaria um hospital pré-existente em uma nova composição.
Esta maneira de compor e arranjar edifícios vem provavelmente de sua formação musical. Lelé toca piano flauta, violão e acordeão e de sua proposta de uma pré-fabricação aberta, em que os mesmos elementos podem ser usados para produção de distintos programas e edifícios O fato é que Lelé não se acanha em usar reiterativamente num mesmo projeto ou em diferentes edifícios, a mesma forma, a exemplo dos sheds (coberturas), que quebram como ondas nos hospitais da rede Sarah, e as ocas circulares presentes no Sarah Lago Norte de Brasília, Tribunal Regional Eleitoral da Bahia e projeto da Fundação Darcy Ribeiro. Isto não é uma novidade, nem diminui seu mérito. Os arquitetos classicistas sempre utilizaram o mesmo repertório formal – ordens clássicas, abobadas e cúpulas – em composições variadas. E não são diferentes os modernistas, com os pilotis, as fachadas de vidro e os terraços-jardins.

A forma arquitetônica de Lelé nasce de motivações endógenas de caráter funcional, espacial e estrutural, como na maioria dos organicistas. Essa introspecção explica, de uma parte, sua estética e espacialidade particulares, com interiores diáfanos, onde a luz e o ar jorram dos tetos, e de outra, a unicidade de sua obra, independente do contexto urbano que a envolve. Na verdade, sua obra na futurística Brasília ou na tradicional Salvador, não diferem muito. Lelé dominou progressivamente o concreto pré-fabricado, a argamassa armada e o treliçado metálico, até chegar a atual liberdade de plasmar e produzir o espaço em função do uso social, da luz, do vento e da poesia.

Em qualquer parte do mundo, seus atributos e obras o tornariam uma cabeça disputada por ambiciosos prefeitos, governadores e os mais altos escalões nacionais. No Brasil, os nossos preclaros dirigentes políticos ordenaram fechar todas as cinco fabricas de refazer cidades, com enorme prejuízo para a população e seu criador seria literalmente fired (demitido/fritado). Não conseguiram, porém, destruir sua obra consagrada popular e internacionalmente. Lelé está mais uma vez com o pé na estrada, disposto a reconstruir tudo de novo, desde que encontre alguém interessado. Até quando?





Caderno Cultural de A Tarde, de 15/07/1969

DES/CONSTRUÇÃO

Paulo Ormindo de Azevedo

A Lelé

Definir o limitado espaço
Espreitando o sol e o vento.
Imaginar uma frondosa copa
Marcando ritmicamente o traço.

Buscar no chão o fundamento
E do saibro e da cal o traço.
Armar a plástica argamassa
Com engenho, metal e cimento.

Fundir a forma na fôrma vazada,
Remover o elevado cimbre
E sentir da placa o timbre,
Vibrando a cada passada.

Domar água, vento e geada,
Filtrar a cor no clarão do mormaço,
Decompondo luz, matéria e espaço,
Para recriar plenamente o nada

ARGAMASSA ARMADA

A Lelé

Achar no chão o fundamento
E no saibro e na cal o traço.
Armar a plástica argamassa
Com engenho, ferro e cimento.

Fundir a peça na fôrma vazada
Remover o elevado cimbre
E ouvir da placa o timbre,
Ecoando a cada passada.

Armar os painéis num cio
Recobrir de vez o espaço,
Filtrar a luz do mormaço
Para recriar pleno o vazio


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