Artigos de Jornal


A cidade possível

  • 17 de Junho de 2000

Mestre Jorge Calmon em seu artigo semanal neste jornal do último dia 8 levanta a questão de “Um novo destino para a Cidade Baixa”, com base a comentários públicos, mas não oficializados, de que estaria sendo gestado um plano para aquela área da cidade cuja tônica seria a permissão de habitações coexistindo com o comercio. A diversidade funcional do centro é um fato histórico e os europeus nunca renunciaram a viver e “curtir” o centro, com sua grande oferta de serviços e equipamentos culturais. O mesmo não ocorre em países mais novos, em especial de tradição anglo-saxônica, onde a classe média prefere viver em subúrbios-jardins e o centro, dominado pelo capital, se transforma em uma área comercial deserta e insegura à noite e nos fins de semana.
Por esta razão, uma das preocupações atuais das autoridades norte americanas é introduzir habitação nessas áreas. Esta nova política urbana destina-se, basicamente, a estabelecer uma vigilância social diuturna, capaz de inibir a violência, inclusive da policia. As grandes cidades americanas, inclusive New York, tem adotado essa prática, condicionando os grandes investimentos imobiliários a reservarem parte de sua área a funções que restabeleçam o equilíbrio da vida urbana, com a vivenda, o lazer e os pequenos serviços. Isto pode ser observado na downtown nova-iorquina, na área conquistada ao Rio Hudson, onde se instalou o Financial Center, formando um complexo com shoppings, serviços e apartamentos, que de outro modo não poderiam competir com os vorazes vizinhos da Wall Street.
O nosso caso é bem diferente. Tendo em outras oportunidades, nesse mesmo jornal, me ocupado da decadência daquela área estratégica de Salvador gostaria de fazer algumas considerações antes que o suposto plano se transforme em decreto ou coisa que o valha. Não sou contra a idéia, muito pelo contrário, mas tenho medo que seja mais uma medida isolada que ao contrário de resolver a questão vá aumentar ainda mais a confusão. A decadência da área central de Salvador se deve a uma série de fatores dentre os quais sobressaem as novas relações intra e interregional, que privilegiaram outros meios de transporte que não os tradicionais, e a tendência universal a descentralização facilitada pela revolução das comunicações. Na verdade, estes fatores influíam no desenvolvimento de todas as cidades ocidentais e com exceção de casos específicos, nenhuma deixou que se marginalizasse seu centro.
O elemento diferenciador do caso baiano, a meu ver, é a prática de grandes intervenções públicas sem avaliação de seus impactos e sem coordenação com outras ações, visando apenas o melhor custo benefício setorial. Nas últimas quatro décadas, a região metropolitana de Salvador recebeu inversões públicas ou incentivadas de grande ambição. Entre outras podemos citar: um distrito industrial, o CIA, e um porto, Aratu; uma petroquímica, o Copec; um novo acesso rodoviário e complexo comercial, o Iguatemi; um novo complexo administrativo, o CAB; um grande vetor de expansão, a Paralela; enormes conjuntos habitacionais do BNH e extenso sistema de avenidas de vale.
Além da falta de coordenação entre eles, a tecnicidade desses planos setoriais é duvidosa. O CIA, maior do que a própria Salvador na época, minguaria com o declínio dos privilégios fiscais; a petroquímica se mostraria isolada e pouco competitiva; o complexo Iguatemi-CAB roubaria a sustentabilidade da área central, depreciando o já combalido patrimônio cultural e enormes investimentos privados instalados do Comércio; a pulverização dos conjuntos do BNH criariam um enorme ônus para a Prefeitura e facilitaria a grilagem e favelização do estratégico “Miolo”. A Paralela/ Estrada do Coco serviria apenas a adensar o Litoral Norte. Só as avenidas de vale, baseadas em um plano verdadeiramente urbanístico, o EPUCS, seria uma unanimidade, ainda que mal desenvolvido e defasado 20 anos.
Apesar desses imensos projetos periféricos, os últimos investimentos de infra-estrutura na área central de Salvador datam do final da década de 50: o Túnel Américo Simas e a Av. de Contorno. Contemporaneamente o setor foi esvaziado da administração estadual, de duas universidades – UFBa e UCSAL - e grande parte das atividades portuária, bancária, comercial e de serviços. A mesma visão imediatista excluiria o Comércio e o Centro Histórico do acesso ao metrô que se está construindo em nossa cidade.
O que ocorre na área central de Salvador não é, portanto, uma contingência inevitável do progresso. Afinal, cidades muito mais ricas e dinâmicas que Salvador também sofreram os efeitos da descentralização e da reestruturação de suas relações com a região e o mundo. Nem por isso a Sorbone abandonou o a Rive Gauche do Sena, ou a City foi deslocada em função da desativação do porto de Londres, ou os teatros da Broadway tiveram que fechar suas portas devido à deterioração do Time Square. Pelo contrario, estas cidades recuperaram seus centros com algumas obras de infra-estrutura e a adoção de medidas administrativas e fiscais baseadas em um planejamento compreensivo e amplamente discutido com todas os atores urbanos, o que assegurou seu efetivo cumprimento.
Em artigos publicados neste mesmo jornal, há quase uma década, Uma cidade com duas cabeças (29/09/91) e O porto é a porta (19/10/91), chamei a atenção para a importância estratégica da Cidade Baixa como plataforma de articulação da cidade com sua região, através da Baia de Todos os Santos, e o perigo da marginalização do velho centro, reduzido apenas a um setor boêmio. Todas estas questões passam por uma definição prévia do que será Salvador nas próximas décadas. Uma cidade industrial do terceiro mundo, dependente de incentivos fiscais, ou uma cidade capaz de se desenvolver pela força de sua cultura do turismo e engenho de seus filhos, integrada a novas redes urbanas.
Essa discussão não pode ficar restrita a meia dúzia de técnicos e ao remendo de uma Lei de Uso do Solo que nunca funcionou por falta de objetivos claros e representatividade dos verdadeiros interesses das forças sociais e econômicas que modelam a cidade. Não precisamos de uma declaratória de boas intenções, senão de uma norma para a construção da cidade possível pelo embate e concerto de todas as forças envolvidas.

SSA: A Tarde, 17/06/2000


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