Artigos de Jornal
Thales de Azevedo, mestre e aprendiz
Ele foi médico, historiador, antropólogo e professor. Publicou mais de 20
títulos, cerca de 250 ensaios e um sem-número de crônicas semanais, durante 50
anos. Tamanha produção resultou do cruzamento da curiosidade lúdica de um sempre
aprendiz com a persistência e compulsão de um garimpeiro de ideias. Garimpeiro
que não guardava para si os seus achados. Era do tipo que se aprazia mais com o
alumbramento da faísca em meio ao cascalho, do que com a própria gema. Não
sossegava enquanto não a compartisse, lapidada, nas salas de aula, em livros,
revistas e jornais.
Thales de Azevedo foi professor de todos os graus. Do secundário, nos Colégios
Maristas e Antonio Vieira. Do superior, como assistente das Faculdades de
Farmácia e Medicina. A partir de 1942, como catedrático de Antropologia e
Pesquisa Social, respectivamente na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e
Escola de Serviço Social da Bahia. Orientou numerosos pesquisadores, mestrados e
doutorandos, nacionais e estrangeiros, em temas que foi o pioneiro no país.
Participou de bancas de concurso das mais conceituadas universidades brasileiras
e foi convidado a ensinar em universidades da Espanha, EUA, Peru e Portugal.
Mas não se limitou às salas de aulas. Sua atuação como gestor educacional se
inicia cedo, ainda em 1933, em Castro Alves, recém-formado, como inspetor
estadual de ensino. Em 1944, funda e dirige, durante dez anos, a Escola de
Serviço Social da Bahia, semente da atual Universidade Católica de Salvador.
Dois anos antes, já havia integrado o grupo de professores, liderados por Isaias
Alves, que fundou a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Bahia. Ali,
além da cátedra, criou os Seminários de Antropologia e a dirigiu; durante os
anos mais duros do autoritarismo, não permitindo seu amordaçamento. Ainda na
Universidade Federal da Bahia fundou e dirigiu o Instituto de Ciências Sociais,
fechado pela repressão, e foi o primeiro pró-reitor de assuntos culturais,
desfraldando a bandeira da reforma universitária.
No governo do estado, como médico, ocupou-se fundamentalmente de educação e
medicina social, participando e organizando campanhas sobre nutrição, higiene e
combate a doenças infectocontagiosas. Quando Anísio Teixeira assume a Secretaria
de Educação e Saúde, na administração democrática de Otávio Mangabeira, ele é
convocado a ser seu principal assistente. Ali é encarregado de coordenar, pela
parte baiana, o Convênio Estado da Bahia / Columbia University, que
desenvolveria durante 15 anos importante programa de intercâmbio e pesquisa
social nas várias regiões do estado, como suporte à política educacional
implantada pelo grande educador. Ainda por indicação de Anísio, estruturou,
secretariou e dirigiu, por mais de um período a Fundação para o Desenvolvimento
da Ciência na Bahia, primeiro órgão de apoio à pesquisa no estado, em má hora
extinto.
Mais que professor e educador ele foi, na cátedra, nos livros e na vida, um
mestre de sabedoria, tolerância e humildade. Thales de Azevedo procurou antes
entender e interpretar, que pontificar. Tratando temas polêmicos, como relações
raciais, catolicismo popular, conflito Igreja/Estado, ideologia nacional e
mudanças de comportamento, ele manteve sempre uma grande isenção e a convicção
de que os conflitos são processos naturais de ajustamento pata atingir novos
patamares. Esta atitude equilibrada, distante dos extremos, fez com que seus
livros se mantivessem sempre atuais. Em Povoamento da Cidade do Salvador, obra
que é a matriz de uma série de ensaios posteriores sobre a sua Bahia, ele não
apenas introduz o estudo da vida cotidiana de nosso povo, utilizando
pioneiramente métodos quantitativos, como dá uma comovente dimensão humana à
História, mais além da máscara dos protagonistas e dos condicionamentos
econômicos e sociais.
Contrariando a versão oficial da época, ele demonstra que o sucesso da
colonização se deveu menos às virtudes dos colonizadores, que a suas
transgressões, diante das circunstâncias do empreendimento: uma colônia que
deveria produzir a qualquer custo, mas onde faltava tudo, em especial mulheres.
Povoamento é a saga de grupos étnicos lutando contra o destino, que os condenou
ao desterro e servilismo, à escravidão e à dizimação pela doença, cativeiro e
aculturação, mas que também os uniu. Uma história tecida, não episodicamente,
senão cotidianamente, nos canaviais, nas reduções, nos bordéis e nos porões, com
sangue, suor e paixão para a formação de um povo, ao mesmo tempo, uno e
diversificado, étnica e culturalmente. Não surpreende, portanto, que este
trabalho tenha recebido dois prêmios por sua acuidade histórica e um por seus
méritos literários, da Academia Brasileira de Letras.
Thales de Azevedo foi também ficcionista e pintor sensível. Recebeu em vida e
postumamente as mais eloquentes homenagens das instituições baianas. Mas a
atribuição de seu nome a esta escola e biblioteca, localizadas
significativamente na esquina em que a Costa Azul do Atlântico se curva para
receber o Camarajipe, agora restaurado em sua dupla condição de nascente e
torrente, supera qualquer outro tributo. É que as salas de aula e de leitura
foram os ambientes privilegiados de sua conveniência, trabalho e descobrimentos.
Sob a abóboda azul desta escola-parque, que mira o horizonte largo, sinto o
sobro indisfarçável de sua presença trazido pelas brisas da memória e das
marinhas ensolaradas de seu pincel e espanto. Aqui seu legado não será
esquecido, mas cultivado e desenvolvido por este povo sofrido, valente e alegre,
que ele sempre procurou traduzir.
A Bahia, através de seu governo e representação, nas pessoas do Dr. Paulo Ganem
Souto, do senador Antonio Carlos Magalhães e dos secretários Edilson Freire e
Paulo Gaudenzi, o reconhecimento da família, dos amigos e alunos. Nossos
agradecimentos também às diretorias e aos corpos técnicos do Conesc, da
Superintendência de Desenvolvimento Educacional e da Diretoria de Bibliotecas
Públicas do Estado pelo empenho e dedicação em fazer do Colégio Estadual e
Biblioteca Pública Thales de Azevedo uma instituição à altura do seu nome, um
referencial de qualidade da educação pública na Bahia
A TARDE – 03/04/1997
PS - Discurso proferido na inauguração do Colégio Estadual e Biblioteca Publica
Thales de Azevedo