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Thales de Azevedo, mestre e aprendiz

  • 03 de Abril de 1997

Ele foi médico, historiador, antropólogo e professor. Publicou mais de 20 títulos, cerca de 250 ensaios e um sem-número de crônicas semanais, durante 50 anos. Tamanha produção resultou do cruzamento da curiosidade lúdica de um sempre aprendiz com a persistência e compulsão de um garimpeiro de ideias. Garimpeiro que não guardava para si os seus achados. Era do tipo que se aprazia mais com o alumbramento da faísca em meio ao cascalho, do que com a própria gema. Não sossegava enquanto não a compartisse, lapidada, nas salas de aula, em livros, revistas e jornais.

Thales de Azevedo foi professor de todos os graus. Do secundário, nos Colégios Maristas e Antonio Vieira. Do superior, como assistente das Faculdades de Farmácia e Medicina. A partir de 1942, como catedrático de Antropologia e Pesquisa Social, respectivamente na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e Escola de Serviço Social da Bahia. Orientou numerosos pesquisadores, mestrados e doutorandos, nacionais e estrangeiros, em temas que foi o pioneiro no país. Participou de bancas de concurso das mais conceituadas universidades brasileiras e foi convidado a ensinar em universidades da Espanha, EUA, Peru e Portugal.

Mas não se limitou às salas de aulas. Sua atuação como gestor educacional se inicia cedo, ainda em 1933, em Castro Alves, recém-formado, como inspetor estadual de ensino. Em 1944, funda e dirige, durante dez anos, a Escola de Serviço Social da Bahia, semente da atual Universidade Católica de Salvador. Dois anos antes, já havia integrado o grupo de professores, liderados por Isaias Alves, que fundou a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Bahia. Ali, além da cátedra, criou os Seminários de Antropologia e a dirigiu; durante os anos mais duros do autoritarismo, não permitindo seu amordaçamento. Ainda na Universidade Federal da Bahia fundou e dirigiu o Instituto de Ciências Sociais, fechado pela repressão, e foi o primeiro pró-reitor de assuntos culturais, desfraldando a bandeira da reforma universitária.

No governo do estado, como médico, ocupou-se fundamentalmente de educação e medicina social, participando e organizando campanhas sobre nutrição, higiene e combate a doenças infectocontagiosas. Quando Anísio Teixeira assume a Secretaria de Educação e Saúde, na administração democrática de Otávio Mangabeira, ele é convocado a ser seu principal assistente. Ali é encarregado de coordenar, pela parte baiana, o Convênio Estado da Bahia / Columbia University, que desenvolveria durante 15 anos importante programa de intercâmbio e pesquisa social nas várias regiões do estado, como suporte à política educacional implantada pelo grande educador. Ainda por indicação de Anísio, estruturou, secretariou e dirigiu, por mais de um período a Fundação para o Desenvolvimento da Ciência na Bahia, primeiro órgão de apoio à pesquisa no estado, em má hora extinto.

Mais que professor e educador ele foi, na cátedra, nos livros e na vida, um mestre de sabedoria, tolerância e humildade. Thales de Azevedo procurou antes entender e interpretar, que pontificar. Tratando temas polêmicos, como relações raciais, catolicismo popular, conflito Igreja/Estado, ideologia nacional e mudanças de comportamento, ele manteve sempre uma grande isenção e a convicção de que os conflitos são processos naturais de ajustamento pata atingir novos patamares. Esta atitude equilibrada, distante dos extremos, fez com que seus livros se mantivessem sempre atuais. Em Povoamento da Cidade do Salvador, obra que é a matriz de uma série de ensaios posteriores sobre a sua Bahia, ele não apenas introduz o estudo da vida cotidiana de nosso povo, utilizando pioneiramente métodos quantitativos, como dá uma comovente dimensão humana à História, mais além da máscara dos protagonistas e dos condicionamentos econômicos e sociais.

Contrariando a versão oficial da época, ele demonstra que o sucesso da colonização se deveu menos às virtudes dos colonizadores, que a suas transgressões, diante das circunstâncias do empreendimento: uma colônia que deveria produzir a qualquer custo, mas onde faltava tudo, em especial mulheres. Povoamento é a saga de grupos étnicos lutando contra o destino, que os condenou ao desterro e servilismo, à escravidão e à dizimação pela doença, cativeiro e aculturação, mas que também os uniu. Uma história tecida, não episodicamente, senão cotidianamente, nos canaviais, nas reduções, nos bordéis e nos porões, com sangue, suor e paixão para a formação de um povo, ao mesmo tempo, uno e diversificado, étnica e culturalmente. Não surpreende, portanto, que este trabalho tenha recebido dois prêmios por sua acuidade histórica e um por seus méritos literários, da Academia Brasileira de Letras.

Thales de Azevedo foi também ficcionista e pintor sensível. Recebeu em vida e postumamente as mais eloquentes homenagens das instituições baianas. Mas a atribuição de seu nome a esta escola e biblioteca, localizadas significativamente na esquina em que a Costa Azul do Atlântico se curva para receber o Camarajipe, agora restaurado em sua dupla condição de nascente e torrente, supera qualquer outro tributo. É que as salas de aula e de leitura foram os ambientes privilegiados de sua conveniência, trabalho e descobrimentos. Sob a abóboda azul desta escola-parque, que mira o horizonte largo, sinto o sobro indisfarçável de sua presença trazido pelas brisas da memória e das marinhas ensolaradas de seu pincel e espanto. Aqui seu legado não será esquecido, mas cultivado e desenvolvido por este povo sofrido, valente e alegre, que ele sempre procurou traduzir.

A Bahia, através de seu governo e representação, nas pessoas do Dr. Paulo Ganem Souto, do senador Antonio Carlos Magalhães e dos secretários Edilson Freire e Paulo Gaudenzi, o reconhecimento da família, dos amigos e alunos. Nossos agradecimentos também às diretorias e aos corpos técnicos do Conesc, da Superintendência de Desenvolvimento Educacional e da Diretoria de Bibliotecas Públicas do Estado pelo empenho e dedicação em fazer do Colégio Estadual e Biblioteca Pública Thales de Azevedo uma instituição à altura do seu nome, um referencial de qualidade da educação pública na Bahia

A TARDE – 03/04/1997

PS - Discurso proferido na inauguração do Colégio Estadual e Biblioteca Publica Thales de Azevedo


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