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Salvador, a cidade que nós queremos
Vi recentemente no Centro Cultural Banco do Brasil, do Rio de Janeiro, um dos
mais belos quadros do grande pintor mineiro Guignard. Mostrava Ouro Preto com
seu casario chão recoberto pela neblina matutina, enquanto as torres bulbosas de
suas igrejas emergiam das brumas com uma força e uma luz impressionante. Era uma
exposição sobre o Barroco Mineiro e aquele quadro, de poucas décadas atrás,
retratava melhor a cidade barroca que todas as imagens sacras e monumentos
centenários expostos. Em Roma são as cúpulas, como em Istambul os minaretes e em
Nova York os arranha-céus que dão identidade à urbe.
A identidade de Salvador vem de seus dois andares e do perfil de sua Montanha
humanizada. Não é sem razão que os pintores holandeses e os viajantes e
fotógrafos do século XIX retrataram tanto Salvador vista da baia. E que como uma
cidade barroca Salvador tinha uma organização espacial única. Até 1972, as
construções de nossa urbe não podiam exceder a cota da cornija da Catedral.
Naquela época ainda se podia ver as torres das igrejas flutuando sobre o mar de
telhados e àticos, como as cúpulas em Roma. A partir da lei 2403/72, a altura
dos edifícios passou a ser regulado por coeficientes de utilização que
privilegia os interesses da indústria imobiliária. É como se pudesse construir
na área histórica de Paris ou Roma, como se constrói em sua periferia, por uma
suposta isonomia imobiliária. Desde então, a cidade começou a perder sua imagem
e característica de dois andares. Vista de Mont Serrat já quase não se distingue
as duas cidades.
Uma conseqüência de seus dois andares são os mira-mares e torres mirantes, como
os dos conventos da Lapa, Desterro e Soledade, para contemplação da baia. Tais
mira-mares estavam geralmente ligados ao átrio de uma igreja, no bordo da
Montanha. Preservam-se ainda os de Santo Antonio da Barra, Vitória, Aflitos,
Santa Teresa, Santo Antonio Alem do Carmo e Lapinha. Bem ou mal esses belvederes
se conservam e ao atravessarmos a Baia de Todos os Santos podemos ainda
identifica-los pelas torres das igrejas que lhes dão nome. Outros se perderam,
como a tricentenária igreja da Sé vendida por trinta moedas a uma empresa de
bondes, que trinta anos mais tarde também viraria sucata. Um dos últimos
mirantes privados desapareceu com a construção da Mansão dos Cardeais.
É especialmente por seu valor urbanístico e paisagístico que o tombamento da
igreja da Vitória com seu átrio circundante se justifica. Não é demais lembrar
que aquela igreja nasceu olhando a baia e só no final do século XIX teve sua
fachada voltada para o interior. Sempre defendi mecanismos compensatórios às
limitações impostas pelo tombamento em beneficio da sociedade. Infelizmente só
em Salvador instrumentos urbanísticos modernos, como a transferência do direito
de construir, Transcon, não se aplica aos tombamentos e à criação de praças e
áreas verdes, como foi concebido no primeiro mundo.
São essas e outras questões que precisam ser discutidas tematicamente e sem
atropelo, para a formulação do novo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano. A
preservação da qualidade de vida de Salvador deve ser a preocupação primeira do
PDDU, de tal modo que no futuro não seja necessário a adoção de medidas
excepcionais, por uma instancia superior de poder, para assegurar a preservação
de valores urbanos que não são apenas locais.
Foi com esta visão que defendi no Conselho Consultivo do IPHAN a manutenção do
tombamento provisório do Corredor da Vitória, já descaracterizado, até que se
lograsse um compromisso formal da Prefeitura de Salvador de reduzir
drasticamente os coeficientes urbanísticos daquela área e frear a destruição
continuada da encosta com charriots e piers. Não podia, por outro lado, endossar
uma proposta inócua e escapatória, que tombava apenas as árvores da rua e meia
dúzia de jardins e edificações públicas, alguns dos quais já tombados, para não
enfrentar a pressão do mercado. Isto seria premiar o statu quo forjado pelo
mesmo mercado, uma situação antagonicamente diversa a do tombamento dos
“jardins” paulistanos.
Como eu previa, tal compromisso, negociado após o arquivamento do processo,
nunca foi honrado e os alvarás para construção de novos espigões continuam a ser
expedidos. O que o clube dos privilegiados moradores locais não compreende é que
a persistirem os coeficientes urbanísticos atuais, com edifícios de 34 andares e
seis carros por apartamento, de pouco serve preservar oitiseiros e fachadas
empalhadas, pois em pouco tempo o corredor polonês da Vitória entrará em colapso
circulatório e ambiental urbano. Em Manhattan, com suas avenidas de seis pistas,
já não se permite mais garagens na ilha.
São questões como essas, não só da Vitória, como do Litoral Ferroviário, do
Miolo e da Orla Atlântica que precisam ser discutidas em foros temáticos
qualificados e não apenas em redundantes assembléias suburbanas. Se o debate
técnico do PDDU ainda não foi aberto, a sociedade pode força-lo. Por isto mesmo,
atos tresloucados, como o dos herdeiros de Arnold Wildberger e seus sócios, de
demolirem sua mansão às escondidas, constituem um tiro no pé e uma grosseria
urbana que mancha a memória e a imagem de seus maiores, e destrói um naco da
cidade que é de todos nós.
SSA: A Tarde, 10/02/2007