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Praga é uma festa

  • 20 de Janeiro de 2001

Descobri a cultura checa na Ajuda, ainda estudante universitário, no escurinho do Cine Art, num festival de cinema do leste europeu. A beleza, a cor e a poesia de seus filmes, muito dos quais de animação, contrastava com as ruças, edificantes e épicas películas soviéticas, exibidas pouco antes no Popular. Os checos viviam uma pequena abertura que desembocaria na fracassada Primavera de Praga. Alguns desses filmes fizeram sucesso em todo o mundo, como "Um dia um gato", uma fábula sobre o autoritarismo e o tédio das ditaduras na visão de um felino, espécie de Snoop, que punha a nu a estupidez e a hipocrisia desses regimes sem dizer uma só palavra, usando apenas flash back e um filtro de cor. Mas fazia a denuncia de forma tão metafórica e cândida que os censores não perceberam o ardil. Experimentaríamos o mesmo sufoco, pouco depois, com a Revolução de 64.

Motivado em grande parte por suas imagens, visitei o país em 1969, pouco depois da Primavera de Praga, que sufocou as pequenas conquistas alcançadas após 20 anos de luta. Tive o privilégio de ser hospede da família Matousková, cuja filha Kamila fora minha colega de restauração na Universidade de Roma. Pude assim ter um insight do regime, em nada diferente do que vivíamos no Brasil, Argentina e Uruguai. A mesma segurança nacional era utilizada para cercear as liberdades individuais em ditaduras ideológicamente opostas mas simétricas nos efeitos.

Praga, bela como sempre, parecia morta e fria sob uma mortalha de névoa. Os Tatras (Skoda) negros, embora de desenho avançado, haviam se convertido em um símbolo do atraso, da repressão, tal como os Falcons (Ford) na Argentina e as Caravans no Brasil. A passagem desses corvos criava sempre uma apreensão nos poucos transeuntes e turistas que, como eu, vagavam pela cidade deserta. Os estrangeiros escondiam suas câmaras, um instrumento tão suspeito quanto os mimeógrafos no Brasil, na mesma época.

Quis por a prova essa má impressão em recente viagem à Europa. Telefonei aos cônsules honorários da Republica Checa em Salvador, Guido e Bohumíla Araújo, pedindo instruções sobre o visa. O casal respondeu-me enviando guias e um lembrete para não deixar de curtir a "melhor cerveja do mundo", no U Fleku.

A sabedoria popular associou a imagem dessa cidade a dois artistas geniais. Seus retratos estão por toda parte, em posters, T-sherts e souvenirs. São eles o arrebatado Wolfgang Mozart, símbolo da vida cortesã e boêmia da cidade, à qual dedicou sua 36a sinfonia e ali teve sua melhor ópera, Don Giovanni, consagrada, em contraste com o fracasso na Ópera de Viena por artimanha de seu diretor, Salieri. O outro é o angustiado Franz Kafka, que retrata os tormentos, sobressaltos e dilemas da Europa Central, berço da maioria das guerras e tragédias continentais. De fato a história da cidade se desenvolveu pendularmente sob o signo de um anjo e de um fantasma.

Praga é uma cidade aninhada em um vale, dominada pela colina verde e castelo de Prazsky Hrad. O Vltava a corta e duplica sua imagem ao longo da sucessão de pontes-belvederes que a costura. Dentre essas destaca-se a mais bela passarela urbana da Europa, a Ponte Carlos - Karlúv Most - com suas portas torreadas e grupos escultóricos sacros barrocos, que velam pela caminhada dos passantes. A cidade não é marcada por grandes complexos monumentais, religiosos ou governamentais, senão por um conjunto urbano tipicamente cidadão, por suas pontes, pelo carrilhão da Praça Velha - Staromestské - que modula o ritmo da cidadania, por seus sobrados coloridos e caprichosamente decorados, por seus teatros, cervejarias e cafés.

A urbe foi sucessivamente reconstruída em quatro períodos e estilos. O Gótico é responsável por sua idade de ouro, inaugurada por Carlos IV em 1346 como rei da Boêmia. Nove anos depois. Praga seria elevada a capital do Sacro Império Romano e a Cidade Baixa, Malá Strana, no sopé do castelo, seria reformada e expandida. Em Praga o gótico assume uma expressão singular, com abóbadas plissadas e nervuras florais. Ainda hoje as torres góticas dominam a cidade.

O fantasma da intolerância rondaria a urbe a partir 1415 com a execução do reformador Jan Huss, empurrando o pais para intermináveis lutas político-religiosas. A nação voltaria a estabilidade, a partir de 1526, sob os Habsburgos da Áustria. Após devastador incêndio de Hradcany e Malá Strana, em 1541, a cidade seria reconstruída em estilo Renascença com a colaboração de arquitetos e artistas romanos. No final desse século, com a transferencia da corte de Viena para Praga, a cidade volta a ser um movimentado centro de buscas artísticas e intelectuais.

Praga seria extensa e novamente reformada em um Barroco sensual, boêmio e colorido a partir de 1627, no fervor da Conta-Reforma, após a perseguição implacável aos protestantes e destruição de seus templos e castelos. Por trás das fachadas estreitas, como as do nosso Pelourinho, cujas volutas adoçam e escondem as empenas pontiagudas dos telhados, estão os muros medievais. A mesma sensualidade e musicalidade reaparece no ambiente fin de siecle que precede a formação da República Checa, em 1918, com um Art-nouveau que é a expressão de uma burguesia requintadíssima, de que são exemplos o Grand Hotel Europa, a Casa do Povo - Obecní Dum - e os numerosos cafés e cervejarias da Praça Venceslau e vizinhanças. Depois de breve período Art-decó, o fantasma da repressão baixaria sobre o pais com sua anexação á Alemanha Nazista, seguida do golpe de estado comunista de 1948. Seu retorno à democracia só ocorreria em 1989.

Essa riqueza de estilos reflete, como na Bahia, a diversidade de sua formação étnica: tribos celtas e germânicas locais, a que se somam, a partir do século VI, ondas migratórias eslavas, judias, ciganas, alemães e hoje de turistas de toda a Europa. Seus monumentos são sincréticos: a Basílica de São Jorge, o mais antigo templo da cidade, nasceu românica, mas sua fachada é barroca. A Ponte Carlina é medieval mas foi enriquecida por grupos escultóricos barrocos no século XVII, que lhe deram uma grande sensualidade. Só os renascentistas, em sua rigidez canônica, não são sincréticos.

Desde a última vez que visitei Praga houve um grande avanço. Os grandes monumentos estão restaurados, os sobrados reabilitados e pintados. A cidade não preservou apenas o cenário de seu passado, para repasto dos turistas, conservou principalmente sua tradição de grande centro de arte e cultura. Os checos têm um dos melhores industrial design europeus, atrás apenas dos italianos e suecos. O cruzamento das técnicas tradicionais de marionetes com as de animação de bonecos e os recursos da informática fazem do seu teatro de luz negra a maior contribuição atual à velha arte de representar.

Praga oferece inúmeras exposições e espetáculos de teatro, ópera, balé, dança, orquestra, camerata e jazz, durante todo o ano, especialmente no presente em que foi eleita Capital Cultural da Europa. Atores e músicos arrebanham os turistas, nas praças e cafés, para espetáculos que começam dentro de meia hora no teatros a uma quadra, no palácio da esquina, na igreja mais próxima e até no subsolo do café fronteiriço. Produção original, e não remake dos sucessos da Broadway, que infelizmente monopolizam os palcos de Londres, Berlim e até Paris: Les Miserables, The Phanton of Opera, Notre Dame..., reimportações da cultura européia via o show business americano. No caso de Praga esta oferta é mais que uma estratégia turística, é o desenvolvimento de uma economia da cultura, integrada às novas redes de metrópoles européias, para substituir a base industrial obsoleta, aproveitando um enorme capital humano altamente qualificado e criativo.

Batemos sem aviso na casa dos Matousková, em Dejvice, em um domingo pela manhã, como há 30 anos. Passada a surpresa, quase susto, festejamos o reencontro, agora ampliado por Ester e Tadeás, com champanhe, salgados e doces. Recordamos os colegas, Roma e o surpreendente renascimento de Praga, sob o signo da música e da arte. Na conversa Kamila deixou escapar que tinha alguma coisa a ver com tudo aquilo. Ela foi diretora do serviço de patrimônio checo, que inclui Praga, e é hoje assessora do Ministro do Desenvolvimento Regional, responsável em grande parte por essa transformação.

Praga se difere, assim, da maioria dos centros históricos que vivem do passado, das visitas guiadas, dos antiquários, das retrospectivas de museus, das traças dos arquivos. Ela é hoje um centro cultural tão vivo e produtivo quanto foi em seus períodos mais prósperos e de maior liberdade. É a produção cultural que torna o centro histórico de Praga diferente dos demais. Praga firma, assim, um novo paradigma para a reabilitação e gestão dos centros históricos.

A Guido e Bohumíla nossas desculpas. Não fomos ao multicentenário U Fleku, mas bebericamos em uns botecos populares típicos, onde as jarras são enchidas de cerveja em fontes que mais parecem lavabos de igrejas. Não foi somente um protesto por sua ocupação por hordas de turistas alemães e austríacos, queríamos ter mais uma razão para voltar a Praga.

SSA: A Tarde, 20/01/2001


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