Artigos de Jornal
Praga é uma festa
Descobri a cultura checa na Ajuda, ainda estudante universitário, no
escurinho do Cine Art, num festival de cinema do leste europeu. A beleza, a cor
e a poesia de seus filmes, muito dos quais de animação, contrastava com as
ruças, edificantes e épicas películas soviéticas, exibidas pouco antes no
Popular. Os checos viviam uma pequena abertura que desembocaria na fracassada
Primavera de Praga. Alguns desses filmes fizeram sucesso em todo o mundo, como
"Um dia um gato", uma fábula sobre o autoritarismo e o tédio das ditaduras na
visão de um felino, espécie de Snoop, que punha a nu a estupidez e a hipocrisia
desses regimes sem dizer uma só palavra, usando apenas flash back e um filtro de
cor. Mas fazia a denuncia de forma tão metafórica e cândida que os censores não
perceberam o ardil. Experimentaríamos o mesmo sufoco, pouco depois, com a
Revolução de 64.
Motivado em grande parte por suas imagens, visitei o país em 1969, pouco depois
da Primavera de Praga, que sufocou as pequenas conquistas alcançadas após 20
anos de luta. Tive o privilégio de ser hospede da família Matousková, cuja filha
Kamila fora minha colega de restauração na Universidade de Roma. Pude assim ter
um insight do regime, em nada diferente do que vivíamos no Brasil, Argentina e
Uruguai. A mesma segurança nacional era utilizada para cercear as liberdades
individuais em ditaduras ideológicamente opostas mas simétricas nos efeitos.
Praga, bela como sempre, parecia morta e fria sob uma mortalha de névoa. Os
Tatras (Skoda) negros, embora de desenho avançado, haviam se convertido em um
símbolo do atraso, da repressão, tal como os Falcons (Ford) na Argentina e as
Caravans no Brasil. A passagem desses corvos criava sempre uma apreensão nos
poucos transeuntes e turistas que, como eu, vagavam pela cidade deserta. Os
estrangeiros escondiam suas câmaras, um instrumento tão suspeito quanto os
mimeógrafos no Brasil, na mesma época.
Quis por a prova essa má impressão em recente viagem à Europa. Telefonei aos
cônsules honorários da Republica Checa em Salvador, Guido e Bohumíla Araújo,
pedindo instruções sobre o visa. O casal respondeu-me enviando guias e um
lembrete para não deixar de curtir a "melhor cerveja do mundo", no U Fleku.
A sabedoria popular associou a imagem dessa cidade a dois artistas geniais. Seus
retratos estão por toda parte, em posters, T-sherts e souvenirs. São eles o
arrebatado Wolfgang Mozart, símbolo da vida cortesã e boêmia da cidade, à qual
dedicou sua 36a sinfonia e ali teve sua melhor ópera, Don Giovanni, consagrada,
em contraste com o fracasso na Ópera de Viena por artimanha de seu diretor,
Salieri. O outro é o angustiado Franz Kafka, que retrata os tormentos,
sobressaltos e dilemas da Europa Central, berço da maioria das guerras e
tragédias continentais. De fato a história da cidade se desenvolveu
pendularmente sob o signo de um anjo e de um fantasma.
Praga é uma cidade aninhada em um vale, dominada pela colina verde e castelo de
Prazsky Hrad. O Vltava a corta e duplica sua imagem ao longo da sucessão de
pontes-belvederes que a costura. Dentre essas destaca-se a mais bela passarela
urbana da Europa, a Ponte Carlos - Karlúv Most - com suas portas torreadas e
grupos escultóricos sacros barrocos, que velam pela caminhada dos passantes. A
cidade não é marcada por grandes complexos monumentais, religiosos ou
governamentais, senão por um conjunto urbano tipicamente cidadão, por suas
pontes, pelo carrilhão da Praça Velha - Staromestské - que modula o ritmo da
cidadania, por seus sobrados coloridos e caprichosamente decorados, por seus
teatros, cervejarias e cafés.
A urbe foi sucessivamente reconstruída em quatro períodos e estilos. O Gótico é
responsável por sua idade de ouro, inaugurada por Carlos IV em 1346 como rei da
Boêmia. Nove anos depois. Praga seria elevada a capital do Sacro Império Romano
e a Cidade Baixa, Malá Strana, no sopé do castelo, seria reformada e expandida.
Em Praga o gótico assume uma expressão singular, com abóbadas plissadas e
nervuras florais. Ainda hoje as torres góticas dominam a cidade.
O fantasma da intolerância rondaria a urbe a partir 1415 com a execução do
reformador Jan Huss, empurrando o pais para intermináveis lutas
político-religiosas. A nação voltaria a estabilidade, a partir de 1526, sob os
Habsburgos da Áustria. Após devastador incêndio de Hradcany e Malá Strana, em
1541, a cidade seria reconstruída em estilo Renascença com a colaboração de
arquitetos e artistas romanos. No final desse século, com a transferencia da
corte de Viena para Praga, a cidade volta a ser um movimentado centro de buscas
artísticas e intelectuais.
Praga seria extensa e novamente reformada em um Barroco sensual, boêmio e
colorido a partir de 1627, no fervor da Conta-Reforma, após a perseguição
implacável aos protestantes e destruição de seus templos e castelos. Por trás
das fachadas estreitas, como as do nosso Pelourinho, cujas volutas adoçam e
escondem as empenas pontiagudas dos telhados, estão os muros medievais. A mesma
sensualidade e musicalidade reaparece no ambiente fin de siecle que precede a
formação da República Checa, em 1918, com um Art-nouveau que é a expressão de
uma burguesia requintadíssima, de que são exemplos o Grand Hotel Europa, a Casa
do Povo - Obecní Dum - e os numerosos cafés e cervejarias da Praça Venceslau e
vizinhanças. Depois de breve período Art-decó, o fantasma da repressão baixaria
sobre o pais com sua anexação á Alemanha Nazista, seguida do golpe de estado
comunista de 1948. Seu retorno à democracia só ocorreria em 1989.
Essa riqueza de estilos reflete, como na Bahia, a diversidade de sua formação
étnica: tribos celtas e germânicas locais, a que se somam, a partir do século
VI, ondas migratórias eslavas, judias, ciganas, alemães e hoje de turistas de
toda a Europa. Seus monumentos são sincréticos: a Basílica de São Jorge, o mais
antigo templo da cidade, nasceu românica, mas sua fachada é barroca. A Ponte
Carlina é medieval mas foi enriquecida por grupos escultóricos barrocos no
século XVII, que lhe deram uma grande sensualidade. Só os renascentistas, em sua
rigidez canônica, não são sincréticos.
Desde a última vez que visitei Praga houve um grande avanço. Os grandes
monumentos estão restaurados, os sobrados reabilitados e pintados. A cidade não
preservou apenas o cenário de seu passado, para repasto dos turistas, conservou
principalmente sua tradição de grande centro de arte e cultura. Os checos têm um
dos melhores industrial design europeus, atrás apenas dos italianos e suecos. O
cruzamento das técnicas tradicionais de marionetes com as de animação de bonecos
e os recursos da informática fazem do seu teatro de luz negra a maior
contribuição atual à velha arte de representar.
Praga oferece inúmeras exposições e espetáculos de teatro, ópera, balé, dança,
orquestra, camerata e jazz, durante todo o ano, especialmente no presente em que
foi eleita Capital Cultural da Europa. Atores e músicos arrebanham os turistas,
nas praças e cafés, para espetáculos que começam dentro de meia hora no teatros
a uma quadra, no palácio da esquina, na igreja mais próxima e até no subsolo do
café fronteiriço. Produção original, e não remake dos sucessos da Broadway, que
infelizmente monopolizam os palcos de Londres, Berlim e até Paris: Les
Miserables, The Phanton of Opera, Notre Dame..., reimportações da cultura
européia via o show business americano. No caso de Praga esta oferta é mais que
uma estratégia turística, é o desenvolvimento de uma economia da cultura,
integrada às novas redes de metrópoles européias, para substituir a base
industrial obsoleta, aproveitando um enorme capital humano altamente qualificado
e criativo.
Batemos sem aviso na casa dos Matousková, em Dejvice, em um domingo pela manhã,
como há 30 anos. Passada a surpresa, quase susto, festejamos o reencontro, agora
ampliado por Ester e Tadeás, com champanhe, salgados e doces. Recordamos os
colegas, Roma e o surpreendente renascimento de Praga, sob o signo da música e
da arte. Na conversa Kamila deixou escapar que tinha alguma coisa a ver com tudo
aquilo. Ela foi diretora do serviço de patrimônio checo, que inclui Praga, e é
hoje assessora do Ministro do Desenvolvimento Regional, responsável em grande
parte por essa transformação.
Praga se difere, assim, da maioria dos centros históricos que vivem do passado,
das visitas guiadas, dos antiquários, das retrospectivas de museus, das traças
dos arquivos. Ela é hoje um centro cultural tão vivo e produtivo quanto foi em
seus períodos mais prósperos e de maior liberdade. É a produção cultural que
torna o centro histórico de Praga diferente dos demais. Praga firma, assim, um
novo paradigma para a reabilitação e gestão dos centros históricos.
A Guido e Bohumíla nossas desculpas. Não fomos ao multicentenário U Fleku, mas
bebericamos em uns botecos populares típicos, onde as jarras são enchidas de
cerveja em fontes que mais parecem lavabos de igrejas. Não foi somente um
protesto por sua ocupação por hordas de turistas alemães e austríacos, queríamos
ter mais uma razão para voltar a Praga.
SSA: A Tarde, 20/01/2001