Artigos de Jornal


Salve Miranda !

  • 15 de Novembro de 2020

Não a nobre família de origem portuguesa, ou o turista argentino, do tempo de Alfonsin (1983-89), que vinha para o Brasil no famoso Ford Falcon e vagava pelas ruas comerciais sem comprar nada, só: mira y anda, mas a surrealista Republica de Miranda cucaracha. Com o isolamento da pandemia, tenho aproveitado o tempo livre para rever alguns filmes clássicos na internet, como Le discret charme de la bourgeoisie, de 1972, em que um dos personagens chaves era o embaixador de Miranda na Europa, Don Rafael Acosta. O diplomata fazia parte de um grupo de gente bem e atrapalhada, que se encontrava nas casas de uns e de outros ou em restaurantes chiques para jantares, mas que nunca acertavam, ou por que se enganavam com a data, ou ao chegarem a um bistrô o dono acabara de morrer, ou ainda a comida de outro já tinha acabado.

 

O embaixador vivia negando as chacotas dos amigos europeus, dizendo que a corrupção e o autoritarismo em seu país era coisa de governos passados e que agora Miranda era uma republica democrática e transparente. Apesar de muito elegantes, bebendo champanhotas e se deslocando em carrões, o grupo sabia que estava representando uma farsa e por isso tinham sonhos tragicômicos, mas que escapava sempre. Num desses pesadelos, o embaixador, que sofria de psicose de perseguição pelo comunismo internacional, é flagrado pela polícia abrindo o seu malote diplomático recheado de cocaína para trocar por uma mala de dinheiro dos amigos distribuidores da droga na Europa. Todo o grupo é preso, mas no sonho o Ministro do Exterior do país manda soltá-los, para evitar uma crise diplomática.

 

Num desses encontros, em que faziam fofocas, uma cortina se abre e eles estão num palco de teatro, numa cena ridícula. O auditório vaia e eles se escondem. Se o diretor filmasse hoje, ao invés e uma cortina que se abria, ele mostraria um vídeo sendo virulizado nas redes sociais. Buñuel mostra a relação do grupo com setores do poder, como o bispo que cuida de flores, mas chamado para dar a extrema unção a um criminoso o absolve e mata. Outra cena mostra eles com militares, que se adentram na casa onde iam jantar. Eles tentam seduzir os militares botando água na sopa, mas de repente eles são chamados para uma batida urgente.

 

Entre um episódio e outro, se vê o grupo caminhando sem rumo em uma estrada deserta em meio a campos desmatados para plantio de grãos. O grupo não seria metralhado por esquerdistas, que tanto temiam, senão por uma milícia rival, e o embaixador se salva se escondendo debaixo de uma mesa e acordando. O filme, uma sátira sobre a burguesia e as republiquetas sul-americanas, ganharia o Oscar de melhor filme estrangeiro, em 1973, e termina com a lista de créditos encabeçada por Luis Buñuel e a ressalva: “Qualquer semelhança com fatos e personagens reais é mera coincidência”.


Últimos Artigos