Artigos de Jornal
De volta ao jardim
Não como Cartola, para me queixar às rosas, que não falam, pelo contrário, para redescobri-lo depois do longo inverno da Covid. Vivi até a juventude numa casa na Barra Avenida, que além de um jardim tinha uma roça, que para mim não tinha fim, com galinheiro, horta, mangueiras, bananeiras, sariguês, sabiás, nuvens de borboletas e assombrações. Nunca me habituaria a morar nesses escaninhos verticais e não ter um quintal. Quando me casei fui morar numa casa, das primeiras do BNH na Bahia, que não tinha jardim.
Depois de três filhos, eu e minha mulher resolvemos comprar um lote de 600 m², lá perto, para criarmos um jardim e uma vivenda anexa. No lote construímos uma casa ao longo de um dos seus limites com o afastamento mínimo de 1,50 m. e uma faixa um pouco mais larga no fundo para servir de quintal, onde guardávamos trastes velhos, deixando o resto do terreno como jardim. Trouxe da antiga casa uma árvore, uma bela felícia, com seu bulbo de raízes no porta-malas de um Fiat 247 e a amiga folhagem arrastanda pela rua. Mais tarde plantamos uma mangueira.
Quando a caçula já não tinha perigo de se afogar, criamos um espelho d’água para ouvir os pingos da chuva e tomar banho em dias de calor. Com os cabelos brancos precisei usar óculos e um aparelho de ouvido. Durante a Covid meu jardim ficou surdo, pois eu não conseguia conciliar o aparelho de ouvido com as alças dos óculos e os elásticos da máscara. O nosso jardim perdeu a graça.
Recentemente uma sobrinha me telefonou para se aconselhar sobre um aparelho de ouvido para a mãe. Disse que com a Covid havia deixado de usar, mas ouvia bem as pessoas, pois minha deficiência auditiva era só para sons agudos de grilos de carros e esganiçados chatos. Ela insistiu que eu deveria voltar a participar da vida em toda sua plenitude.
Não usando mais máscara, nem óculos depois de operar a catarata, resolvi reexperimentar o aparelho. Foi uma surpresa e redescobri o jardim. Nos finais de tarde caminho sobre a grama ouvindo os estalidos das folhas secas e os chiados, silvos, trinados e gorjeios dos passos. Pastoreio nuvens que se cruzam em superpostos andares. Vejo sanhaços, bem-te-vis, curiós, papa-capins voando da esgarçada felícia para a gorda mangueira, sempre aos casais, de volta aos ninhos.
Um pouco mais tarde surgem os morcegos que não param de bater suas asas, pois não plainam, fazendo manobras incríveis para pegar insetos. Alguns deles deslizam sobre o espelho d’água para matar a sede. Em que cavernas ou sótãos se esconderão durante o dia? À noite não consigo ver pirilampos, se é que ainda existem, devido às luzes da cidade. Mas ouço grilos, sapos-boi, o piado de uma coruja ao longe e sinto o perfume de um jasmineiro.
Volto, assim, ao jardim e a roça de minha infância com seus perfumes, galos e fantasmas encantados.