Artigos de Jornal
Transcon à moda baiana
A Transcon não era originalmente um prato baiano, mas entrou para o folclore
político local com muito azeite e pimenta de cheiro. A Transferência do Direito
de Construir –TDC resultou de debates na Europa, durante a I Crise do Petróleo,
visando dar sustentabilidade às cidades. A saída era o Solo Criado, fundamentado
na separação entre o direito de propriedade e o de edificar. Consolidou-se na
lei italiana com a separação absoluta dos dois direitos e na legislação
francesa, de 1975, que reconheceu que o proprietário tinha o direito de
construir uma área equivalente a de seu terreno. Além desse limite, chamado
plafond légal de densité (teto legal de densidade), toda construção excedente
ficava condicionada ao pagamento de um valor ao município para financiar
infra-estruturas e melhorias urbanas. Esta doutrina deu origem à chamada
“outorga onerosa”.
Nos EE. UU. um instituto semelhante foi introduzido em Chicago, em 1973, o
“Space Adrift” (espaço flutuante) visando a compensação de proprietários de
edifícios tombados situados em zonas de maior gabarito. Este instrumento se
casava com o planejamento urbano, pois o município indicava áreas para receber
esses créditos onde havia infra-estrutura ociosa e interessava desenvolver.
Surgiu assim a TDC, ou Transcon.
No Brasil, a primeira cidade a utilizar este instrumento foi Curitiba, no inicio
dos anos 80, adotando um misto das duas doutrinas. O Estatuto da Cidade, Lei
10.257/01, regulamentou a questão em âmbito nacional, através de dois artigos. O
de No 28, que trata da “outorga onerosa” e o de No 35, que trata do TDC. A
Transcon, introduzida em Salvador através da Lei 3885/87, confirmada pela Lei
Orgânica do Município, de 1990, deveria servir para implantar infra-estrutura,
preservar o patrimônio, fazer a regularização fundiária de favelas e formar
estoque de terra para o município.
Com o famigerado PDDU-2008, a Prefeitura presenteou, na calada da noite, o setor
imobiliário com milhões de metros quadrados de direitos de construir aumentando
os Coeficientes de Aproveitamento Básicos – CAB até 2,0, um crime de lesa-pátria
equivalente à alienação dos terrenos municipais durante a ditadura. Como se não
bastasse, estabeleceu Coeficientes de Aproveitamentos Máximos – CAM, que chagam
a 4,0, o que permite duplicar a altura dos edifícios, através da compra de
Transcons. Na prática não se viu nenhuma melhoria da infra-estrutura urbana e do
patrimônio histórico, nem das favelas, como o Nordeste de Amaralina, de onde vem
grande parte dos Transcons em giro. A Transcon só serviu para hiper-inflacionar
o preço dos terrenos reais, verticalizar e congestionar a cidade com mais
carros, saturar a infra-estrutura de serviços, desmatar e impermeabilizar o solo
provocando mais alagamentos.
Sem controle da sociedade, a Transcon foi apropriada por um cartel de
especuladores que cobram o que querem pelo metro quadrado de direito de
construir. Com a conivência da SUCON foi estendida, ilegalmente, às poucas áreas
de outorga onerosa, cuja receita poderia trazer algum recurso à cidade. A guerra
que está nos blogs e jornais é provocada pelo fogo amigo dos emergentes
investidores no mercado de derivativos de ações da Salvador S/A, a que foi
reduzida nossa cidade. Como a Transcon é virtual, a cidadania não percebe que
está sendo lesada e que deste jeito Salvador dificilmente será viável
financeiramente.
Agora que a receita vazou, nestes tempos bicudos de Wikileaks, D. Iaiá,
cozinheira de escol, ensina: “Transcon é prato forte, que deve ser cozido em
fogo brando e mexido lentamente para não embolar nem pegar no fundo, colocando
sempre água para render mais. Temperar com sal, pimenta e extrato de mexerica, à
gosto. Deve ser servido morno em rega-bofes de contendores em um grande barraco
paralelo à orla marítima. Pode ser comido puro ou de preferência com
escondidinho de fumeiro, regado com muita caninha, mas ingerido com moderação,
porque costuma provocar refluxos. Como sobremesa, romeu e julieta de queijo
manchego e marmelada”. Baixada a fumaça eleitoral, não se espantem se “tudo
ficar como dantes no cartel de Abrantes”.
SSA: A Tarde, 29/08/10