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Transcon à moda baiana

  • 29 de Agosto de 2010

A Transcon não era originalmente um prato baiano, mas entrou para o folclore político local com muito azeite e pimenta de cheiro. A Transferência do Direito de Construir –TDC resultou de debates na Europa, durante a I Crise do Petróleo, visando dar sustentabilidade às cidades. A saída era o Solo Criado, fundamentado na separação entre o direito de propriedade e o de edificar. Consolidou-se na lei italiana com a separação absoluta dos dois direitos e na legislação francesa, de 1975, que reconheceu que o proprietário tinha o direito de construir uma área equivalente a de seu terreno. Além desse limite, chamado plafond légal de densité (teto legal de densidade), toda construção excedente ficava condicionada ao pagamento de um valor ao município para financiar infra-estruturas e melhorias urbanas. Esta doutrina deu origem à chamada “outorga onerosa”.

Nos EE. UU. um instituto semelhante foi introduzido em Chicago, em 1973, o “Space Adrift” (espaço flutuante) visando a compensação de proprietários de edifícios tombados situados em zonas de maior gabarito. Este instrumento se casava com o planejamento urbano, pois o município indicava áreas para receber esses créditos onde havia infra-estrutura ociosa e interessava desenvolver. Surgiu assim a TDC, ou Transcon.

No Brasil, a primeira cidade a utilizar este instrumento foi Curitiba, no inicio dos anos 80, adotando um misto das duas doutrinas. O Estatuto da Cidade, Lei 10.257/01, regulamentou a questão em âmbito nacional, através de dois artigos. O de No 28, que trata da “outorga onerosa” e o de No 35, que trata do TDC. A Transcon, introduzida em Salvador através da Lei 3885/87, confirmada pela Lei Orgânica do Município, de 1990, deveria servir para implantar infra-estrutura, preservar o patrimônio, fazer a regularização fundiária de favelas e formar estoque de terra para o município.

Com o famigerado PDDU-2008, a Prefeitura presenteou, na calada da noite, o setor imobiliário com milhões de metros quadrados de direitos de construir aumentando os Coeficientes de Aproveitamento Básicos – CAB até 2,0, um crime de lesa-pátria equivalente à alienação dos terrenos municipais durante a ditadura. Como se não bastasse, estabeleceu Coeficientes de Aproveitamentos Máximos – CAM, que chagam a 4,0, o que permite duplicar a altura dos edifícios, através da compra de Transcons. Na prática não se viu nenhuma melhoria da infra-estrutura urbana e do patrimônio histórico, nem das favelas, como o Nordeste de Amaralina, de onde vem grande parte dos Transcons em giro. A Transcon só serviu para hiper-inflacionar o preço dos terrenos reais, verticalizar e congestionar a cidade com mais carros, saturar a infra-estrutura de serviços, desmatar e impermeabilizar o solo provocando mais alagamentos.

Sem controle da sociedade, a Transcon foi apropriada por um cartel de especuladores que cobram o que querem pelo metro quadrado de direito de construir. Com a conivência da SUCON foi estendida, ilegalmente, às poucas áreas de outorga onerosa, cuja receita poderia trazer algum recurso à cidade. A guerra que está nos blogs e jornais é provocada pelo fogo amigo dos emergentes investidores no mercado de derivativos de ações da Salvador S/A, a que foi reduzida nossa cidade. Como a Transcon é virtual, a cidadania não percebe que está sendo lesada e que deste jeito Salvador dificilmente será viável financeiramente.

Agora que a receita vazou, nestes tempos bicudos de Wikileaks, D. Iaiá, cozinheira de escol, ensina: “Transcon é prato forte, que deve ser cozido em fogo brando e mexido lentamente para não embolar nem pegar no fundo, colocando sempre água para render mais. Temperar com sal, pimenta e extrato de mexerica, à gosto. Deve ser servido morno em rega-bofes de contendores em um grande barraco paralelo à orla marítima. Pode ser comido puro ou de preferência com escondidinho de fumeiro, regado com muita caninha, mas ingerido com moderação, porque costuma provocar refluxos. Como sobremesa, romeu e julieta de queijo manchego e marmelada”. Baixada a fumaça eleitoral, não se espantem se “tudo ficar como dantes no cartel de Abrantes”.

SSA: A Tarde, 29/08/10


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