Artigos de Jornal


Salvador, pobre viúva rica

  • 19 de Setembro de 2010

Só há dois tipos de ocupação do solo em Salvador: a floresta de espigões e a capoeira calcinada das favelas. No dizer de Josué de Castro, numa moram os que não dormem com medo dos que não comem e na outra, os que não comem e têm medo dos que não dormem. Para o leigo esta é a realidade social e não podemos fazer nada. Não é assim. Em Salvador a favela passou a alimentar a floresta de espigões. Como assim? A totalidade das transcons que proliferam na cidade e servem apenas para duplicar a altura dos espigões, é resultante de indenizações pagas aos antigos donos de terrenos de favelas.

A Faculdade de Arquitetura da UFBa constatou que as favelas têm uma densidade construtiva maior que os bairros verticalizados, logo não teriam transcons a ceder para outros bairros, como na lei americana, que lhe deu origem. Segundo, a grande maioria dessas favelas não é invasão, senão loteamentos clandestinos, cujos donos foram incapazes de urbanizá-las. Os nossos donos de baldios ou os muram e vigiam, o que é caro, ou os loteiam clandestinamente. Pesquisem os jornais e verão que invasão só em terrenos públicos, como os alagados, o canteiro da Av. Edgard Santos, ou terrenos em litígio, como o Bairro da Paz. Em Salvador, só quem teve capacidade de lotear legalmente foram os grupos Góes-Cohabita, Econômico e Odebrecht.

Ser proprietário de favela em Salvador é um privilegio, ganha com seu micro loteamento e com o recebimento de milhares de transcons. Quem na verdade urbanizou os nossos bairros populares foram os construtores formiguinha fazendo gatos de luz e água, logo ligados pela Coelba e Embasa, e atraindo os distribuidores de gás e as kombis. Portanto, esses terrenos já foram pagos e urbanizados por seus moradores e sua regularização fundiária deveria ser automática, por meio de enfiteuse, sem milionárias indenizações para os antigos loteadores.

A outorga onerosa e a transcon são instrumentos modernos, que têm sido utilizados com sucesso em todo o mundo e no sul do país para dar sustentabilidade às municipalidades, para a criação de praças e parques urbanos e para a preservação do patrimônio sem desembolso do poder publico. Mas em Salvador miríades de metros quadrados de direitos de construir, que ninguém sabe a dimensão, caíram na mão de um poderoso cartel de especuladores e grileiros, que com a conivência da “nomenklatura” municipal ditam as regras urbanas e sufocam os pequenos e médios construtores. Esta é a luta que explodiu nos jornais. Por outro lado, este mesmo cartel impede o uso da outorga onerosa, que poderia trazer recursos para a municipalidade, nas poucas áreas onde a lei a obriga, como a orla marítima, provocando prejuízo estimado de 500 milhões de reais aos cofres públicos.

Este é o quadro da nossa cidade, em que a concessão para construir foi privatizada e a urbe se encontra falida, com a cuia na mão, sem recursos para qualquer investimento, enquanto proliferam condomínios de luxo com apartamentos de quatro milhões de reais, em contraste com favelas e ruas esburacadas. A outorga onerosa e a operação urbana consorciada seriam os instrumentos que permitiriam à cidade se infra-estruturar, diminuindo engarrafamentos, alagamentos, a exclusão e a segregação, que geram tantos prejuízos e violência.

Precisamos nos modernizar para crescer, superando o regime feudal monopolista de domínio da terra, criando um mercado competitivo de solos, em que o poder público possa exercer seu papel constitucional de moderador, concedendo direitos de construir a preços reais e não especulativos. O antigo PDDU -2004 estabelecia que 50% dos direitos de construir em toda a cidade seriam adquiridos com outorga onerosa. Mas o atual restringiu este direito publico à orla e, mesmo assim, a Prefeitura não o cumpre. É inadiável a reforma do PDDU discutido com toda a sociedade, inclusive as forças verdadeiramente produtivas, para nos livrarmos dos grilhões do cartel que se apropriou da cidade e podermos restaurar a governança e a cidadania. Não entendemos como as classes patronais se mantêm aléias a este caso de policia, em um silencio obsequioso.

SSA: A Tarde, 19/09/10


Últimos Artigos