Artigos de Jornal
Salvador, pobre viúva rica
Só há dois tipos de ocupação do solo em Salvador: a floresta de espigões e a
capoeira calcinada das favelas. No dizer de Josué de Castro, numa moram os que
não dormem com medo dos que não comem e na outra, os que não comem e têm medo
dos que não dormem. Para o leigo esta é a realidade social e não podemos fazer
nada. Não é assim. Em Salvador a favela passou a alimentar a floresta de
espigões. Como assim? A totalidade das transcons que proliferam na cidade e
servem apenas para duplicar a altura dos espigões, é resultante de indenizações
pagas aos antigos donos de terrenos de favelas.
A Faculdade de Arquitetura da UFBa constatou que as favelas têm uma densidade
construtiva maior que os bairros verticalizados, logo não teriam transcons a
ceder para outros bairros, como na lei americana, que lhe deu origem. Segundo, a
grande maioria dessas favelas não é invasão, senão loteamentos clandestinos,
cujos donos foram incapazes de urbanizá-las. Os nossos donos de baldios ou os
muram e vigiam, o que é caro, ou os loteiam clandestinamente. Pesquisem os
jornais e verão que invasão só em terrenos públicos, como os alagados, o
canteiro da Av. Edgard Santos, ou terrenos em litígio, como o Bairro da Paz. Em
Salvador, só quem teve capacidade de lotear legalmente foram os grupos
Góes-Cohabita, Econômico e Odebrecht.
Ser proprietário de favela em Salvador é um privilegio, ganha com seu micro
loteamento e com o recebimento de milhares de transcons. Quem na verdade
urbanizou os nossos bairros populares foram os construtores formiguinha fazendo
gatos de luz e água, logo ligados pela Coelba e Embasa, e atraindo os
distribuidores de gás e as kombis. Portanto, esses terrenos já foram pagos e
urbanizados por seus moradores e sua regularização fundiária deveria ser
automática, por meio de enfiteuse, sem milionárias indenizações para os antigos
loteadores.
A outorga onerosa e a transcon são instrumentos modernos, que têm sido
utilizados com sucesso em todo o mundo e no sul do país para dar
sustentabilidade às municipalidades, para a criação de praças e parques urbanos
e para a preservação do patrimônio sem desembolso do poder publico. Mas em
Salvador miríades de metros quadrados de direitos de construir, que ninguém sabe
a dimensão, caíram na mão de um poderoso cartel de especuladores e grileiros,
que com a conivência da “nomenklatura” municipal ditam as regras urbanas e
sufocam os pequenos e médios construtores. Esta é a luta que explodiu nos
jornais. Por outro lado, este mesmo cartel impede o uso da outorga onerosa, que
poderia trazer recursos para a municipalidade, nas poucas áreas onde a lei a
obriga, como a orla marítima, provocando prejuízo estimado de 500 milhões de
reais aos cofres públicos.
Este é o quadro da nossa cidade, em que a concessão para construir foi
privatizada e a urbe se encontra falida, com a cuia na mão, sem recursos para
qualquer investimento, enquanto proliferam condomínios de luxo com apartamentos
de quatro milhões de reais, em contraste com favelas e ruas esburacadas. A
outorga onerosa e a operação urbana consorciada seriam os instrumentos que
permitiriam à cidade se infra-estruturar, diminuindo engarrafamentos,
alagamentos, a exclusão e a segregação, que geram tantos prejuízos e violência.
Precisamos nos modernizar para crescer, superando o regime feudal monopolista de
domínio da terra, criando um mercado competitivo de solos, em que o poder
público possa exercer seu papel constitucional de moderador, concedendo direitos
de construir a preços reais e não especulativos. O antigo PDDU -2004 estabelecia
que 50% dos direitos de construir em toda a cidade seriam adquiridos com outorga
onerosa. Mas o atual restringiu este direito publico à orla e, mesmo assim, a
Prefeitura não o cumpre. É inadiável a reforma do PDDU discutido com toda a
sociedade, inclusive as forças verdadeiramente produtivas, para nos livrarmos
dos grilhões do cartel que se apropriou da cidade e podermos restaurar a
governança e a cidadania. Não entendemos como as classes patronais se mantêm
aléias a este caso de policia, em um silencio obsequioso.
SSA: A Tarde, 19/09/10