Artigos de Jornal
Cabo Verde, um elo com a África
PRAIA, Cabo Verde – A maioria dos baianos não tem uma visão clara do que
representou em nossas relações com a África e Ásia este arquipélago perdido no
Atlântico na rota entre o Brasil e a costa africana.
Descoberto 40 anos antes que Brasil, Cabo Verde logo se transformou em ponto de
apoio da expansão portuguesa na África, Oriente e América. Para facilitar a
colonização destas ilhas, então despovoadas, a Coroa portuguesa criou
incentivos, como o direito dos colonos resgatarem escravos na Costa da Guiné, o
que fez de Cabo Verde um dos mais ativos mercados negreiros da época. Razões
mais circunstanciais que intencionais deflagraram um processo de miscigenação
tão amplo que ninguém aqui, salvo alguns estrangeiros, pode proclamar seu
arianismo ou negritude completa. Vale lembrar que na Bahia a expressão “cabo
verde” é sinônimo de negro de cabelo fino e liso e muitas vezes de olhos verdes.
Pois bem, à medida que avançava a colonização brasileira, estas ilhas, além de
apoio às rotas marítimas, desempenharam também a função de posto de ensaio e
aclimatação de todas as espécies vivas introduzidas no Brasil, do vegetal ao
homem. Gabriel Soares de Souza afirma ter visto chegar à Bahia, procedente de
Cabo Verde, as primeiras vacas, éguas, ovelhas e cabras. O mesmo se passando com
a cana-de-açúcar, trazida da Madeira e deste arquipélago, e logo plantada em
Ilhéus. Também o côco da Índia, o arroz e o inhame teriam chegado, via Cabo
Verde e Ilha de São Tomé, à Bahia. Verdadeira era também a recíproca. O milho,
que servido sob a forma de “cachupa” e “xerém” constitui a base da alimentação
nacional, a ponto de aparecer nas armas da nova República de Cabo Verde, veio da
Bahia. O mesmo se diga da batata e da mandioca, aqui consumida como farinha e
raspas secas ao sol.
O crioulo
Mas as relações não se restringiram à troca de produtos alimentícios. Por aqui
passou grande parte dos escravos africanos, especialmente nos três primeiros
s[éculos de colonização, que no arquipélago eram “ladinizados”, isto é,
aculturados, antes de serem embarcados para o Brasil. Como estes escravos,
procediam de várias nações, aqui se estabeleceu uma língua comum: o crioulo.
Cerca de 80% dos radicais crioulos são de origem portuguesa, mas a sua
morfologia e sintaxe não é a mesma, o que torna o dialeto incompreensível para
nós. O crioulo se difundiu e passou a ser adotado em outras ex-colônias
portuguesas como a Guiné.
As nossas afinidades étnicas e culturais fazem com que a literatura, a música, o
cinema e agora também a televisão brasileira sejam aqui aplaudidos
entusiasticamente. Pena é que nós, tão fechados em nós mesmos, nos privamos da
poesia, da música e de outras manifestações culturais deste e de outros países
africanos de língua portuguesa.
A economia de Cabo Verde baseou-se, nos primeiros séculos de colonização, na
produção de algodão e tecidos, o “pano da costa”, do mesmo tipo que alguns
artesões baianos ainda produzem. Estes panos serviam de moeda para a compra de
escravos na costa africana. Para este fabrico se desenvolveu a produção de
corantes como o anil, a urzela, a cochinilha, que também eram exportados. A
estes produtos se somaram o sal, o gado, as peles. Posteriormente foram
incorporados às exportações a semente de purgueira, da qual se extrai óleo, e o
café.
Cinco séculos de exploração colonial, seguido por um longo período de abandono,
deixaram a economia e o país literalmente arrasados. A expansão da cultura do
milho e o criatório extensivo de gado bovino e caprino, necessários a abastecer
as naus portuguesas e a alimentar o imenso exército de escravos destinados à
exportação, levaram à destruição a já escassa cobertura vegetal, abrindo caminho
para um intenso processo de erosão e desertificação. A situação econômica das
ilhas começou a se agravar, ainda no século XVIII, com a supressão do livre
comércio com as demais nações, em benefício das companhias pombalinas de
comércio. Para fugiu à fome e a pobreza, muitos cabo-verdianos começaram a
emigrar a partir desta época, a princípio incorporando-se à tripulação de barcos
baleeiros norte-americanos, depois emigrando clandestinamente para outros países
africanos e europeus. A partir de 1863, essa emigração foi dirigida, quase
compulsoriamente pelas autoridades portuguesas, em direção às ilhas de S. Tomé e
Príncipe, para desenvolver as rendosas culturas do cacau e do café naquelas
colônias. Tal emigração significava, na prática, um degredo, já que ninguém
conseguia retornar a sua pátria.
O agravamento da situação econômica pelas secas e abandono das autoridades
portuguesas fizeram com que só neste século 83.000 pessoas morressem de fome, ou
seja, mais de um terço de sua população, já que o país possuía 272.000
habitantes, em 1970.
Sem grandes desníveis sociais
Fugindo da fome e do recrutamento para as chamadas guerras de “pacificação” da
Guiné e, nos últimos anos, para a guerra colonial, os cabo-verdianos
intensificam, a partir da década de 50, a emigração para a Europa. Nos anos 60
saíam cerca de 6.000 pessoas por ano. Em 1972 este número se elevou para 18.000.
Muitos emigraram, inclusive, para Portugal, aproveitando as facilidades criadas
pelas autoridades portuguesas para repor a força de trabalho desfalcada pela
guerra colonial e pela emigração clandestina para os países ricos europeus. A
emigração trouxe para o arquipélago, porém, dois efeitos positivos: primeiro, a
remessa de dinheiro do exterior que constitui, praticamente, a única fonte de
divisas do país; segundo, ao retornarem do exílio em países ricos, como os
E.U.A. e a Holanda, muitos destes emigrantes, originários das camadas mais
pobres, trazem consigo um razoável pé-de-meia, galgando posições sociais que
jamais atingiriam se permanecessem no arquipélago. Apesar da pobreza do país,
aqui não se nota os desníveis sociais que são dramáticos no Brasil e em outros
países latino-americanos. As construções pobres da periferia das maiores cidades
são bem melhores que as nossas favelas, e alagados, são construções de pedra,
edificadas em terrenos estáveis.
Hoje, Cabo Verde é uma das mais novas repúblicas africanas, com apenas cinco
anos de vida. Poderia ter vendido sua posição estratégica no Atlântico aos
americanos ou russos e assegurado uma cômoda subsistência. Preferiu, porém, o
não alinhamento. Ao assumirem as rédeas da nação, os novos dirigentes alertaram
o mundo para a situação crítica em que se encontrava o país depois de cinco
séculos de dominação colonial. Os organismos internacionais, liderados pela ONU,
e muitos países diretamente se propuseram ajudar Cabo Verde a sair da situação
em que se encontrava. Graças a esta ajuda e ao espírito de luta dos
cabo-verdianos foram plantados alguns milhões de árvores, construídas mais de
5.000 represas e irrigadas quase 2.000 ha de terrenos agrícolas em apenas cinco
anos. É dentro deste programa de ajuda internacional que aqui estou, em missão
da UNESCO, para conjuntamente com as autoridades locais, organizar o inventário
dos bens culturais do país e elaborar um plano de ação visando sua salvaguarda.
A este propósito devo dizer que arquitetura civil de Cabo Verde é muito
semelhante à do Brasil: grandes sobrados urbanos e “morgadios” que lembram os
nossos engenhos de açúcar, com casas-grandes, capelas e instalações de serviços.
Mas o arquipélago conserva vestígios de igrejas góticas manuelinas, do século
XV, que o Brasil nunca possuiu.
Se existem semelhanças entre a nossa terra e este arquipélago, há também
divergências, e a mais surpreendente destas é constatar que a Bahia com seu
misticismo, sua música, sua indumentária ritual e cozinha é muito mais África do
que Cabo Verde.
SSA: “A TARDE”, 13/01/1981.
PS – Este artigo resultou da primeira missão realiza pela UNESCO ao país depois
de sua independência de Portugal. O meu relatório, reproduzido na Revista ECDJ,
nº 10, Coimbra, mar. 2007, seria uma das peças chaves para a inclusão da Cidade
Velha, ou Ribeira Grande de Santiago, na Lista do Patrimônio Mundial, em 2009.