Artigos de Jornal


Cabo Verde, um elo com a África

  • 13 de Janeiro de 1981

PRAIA, Cabo Verde – A maioria dos baianos não tem uma visão clara do que representou em nossas relações com a África e Ásia este arquipélago perdido no Atlântico na rota entre o Brasil e a costa africana.
Descoberto 40 anos antes que Brasil, Cabo Verde logo se transformou em ponto de apoio da expansão portuguesa na África, Oriente e América. Para facilitar a colonização destas ilhas, então despovoadas, a Coroa portuguesa criou incentivos, como o direito dos colonos resgatarem escravos na Costa da Guiné, o que fez de Cabo Verde um dos mais ativos mercados negreiros da época. Razões mais circunstanciais que intencionais deflagraram um processo de miscigenação tão amplo que ninguém aqui, salvo alguns estrangeiros, pode proclamar seu arianismo ou negritude completa. Vale lembrar que na Bahia a expressão “cabo verde” é sinônimo de negro de cabelo fino e liso e muitas vezes de olhos verdes.
Pois bem, à medida que avançava a colonização brasileira, estas ilhas, além de apoio às rotas marítimas, desempenharam também a função de posto de ensaio e aclimatação de todas as espécies vivas introduzidas no Brasil, do vegetal ao homem. Gabriel Soares de Souza afirma ter visto chegar à Bahia, procedente de Cabo Verde, as primeiras vacas, éguas, ovelhas e cabras. O mesmo se passando com a cana-de-açúcar, trazida da Madeira e deste arquipélago, e logo plantada em Ilhéus. Também o côco da Índia, o arroz e o inhame teriam chegado, via Cabo Verde e Ilha de São Tomé, à Bahia. Verdadeira era também a recíproca. O milho, que servido sob a forma de “cachupa” e “xerém” constitui a base da alimentação nacional, a ponto de aparecer nas armas da nova República de Cabo Verde, veio da Bahia. O mesmo se diga da batata e da mandioca, aqui consumida como farinha e raspas secas ao sol.

O crioulo

Mas as relações não se restringiram à troca de produtos alimentícios. Por aqui passou grande parte dos escravos africanos, especialmente nos três primeiros s[éculos de colonização, que no arquipélago eram “ladinizados”, isto é, aculturados, antes de serem embarcados para o Brasil. Como estes escravos, procediam de várias nações, aqui se estabeleceu uma língua comum: o crioulo. Cerca de 80% dos radicais crioulos são de origem portuguesa, mas a sua morfologia e sintaxe não é a mesma, o que torna o dialeto incompreensível para nós. O crioulo se difundiu e passou a ser adotado em outras ex-colônias portuguesas como a Guiné.
As nossas afinidades étnicas e culturais fazem com que a literatura, a música, o cinema e agora também a televisão brasileira sejam aqui aplaudidos entusiasticamente. Pena é que nós, tão fechados em nós mesmos, nos privamos da poesia, da música e de outras manifestações culturais deste e de outros países africanos de língua portuguesa.
A economia de Cabo Verde baseou-se, nos primeiros séculos de colonização, na produção de algodão e tecidos, o “pano da costa”, do mesmo tipo que alguns artesões baianos ainda produzem. Estes panos serviam de moeda para a compra de escravos na costa africana. Para este fabrico se desenvolveu a produção de corantes como o anil, a urzela, a cochinilha, que também eram exportados. A estes produtos se somaram o sal, o gado, as peles. Posteriormente foram incorporados às exportações a semente de purgueira, da qual se extrai óleo, e o café.
Cinco séculos de exploração colonial, seguido por um longo período de abandono, deixaram a economia e o país literalmente arrasados. A expansão da cultura do milho e o criatório extensivo de gado bovino e caprino, necessários a abastecer as naus portuguesas e a alimentar o imenso exército de escravos destinados à exportação, levaram à destruição a já escassa cobertura vegetal, abrindo caminho para um intenso processo de erosão e desertificação. A situação econômica das ilhas começou a se agravar, ainda no século XVIII, com a supressão do livre comércio com as demais nações, em benefício das companhias pombalinas de comércio. Para fugiu à fome e a pobreza, muitos cabo-verdianos começaram a emigrar a partir desta época, a princípio incorporando-se à tripulação de barcos baleeiros norte-americanos, depois emigrando clandestinamente para outros países africanos e europeus. A partir de 1863, essa emigração foi dirigida, quase compulsoriamente pelas autoridades portuguesas, em direção às ilhas de S. Tomé e Príncipe, para desenvolver as rendosas culturas do cacau e do café naquelas colônias. Tal emigração significava, na prática, um degredo, já que ninguém conseguia retornar a sua pátria.
O agravamento da situação econômica pelas secas e abandono das autoridades portuguesas fizeram com que só neste século 83.000 pessoas morressem de fome, ou seja, mais de um terço de sua população, já que o país possuía 272.000 habitantes, em 1970.

Sem grandes desníveis sociais

Fugindo da fome e do recrutamento para as chamadas guerras de “pacificação” da Guiné e, nos últimos anos, para a guerra colonial, os cabo-verdianos intensificam, a partir da década de 50, a emigração para a Europa. Nos anos 60 saíam cerca de 6.000 pessoas por ano. Em 1972 este número se elevou para 18.000. Muitos emigraram, inclusive, para Portugal, aproveitando as facilidades criadas pelas autoridades portuguesas para repor a força de trabalho desfalcada pela guerra colonial e pela emigração clandestina para os países ricos europeus. A emigração trouxe para o arquipélago, porém, dois efeitos positivos: primeiro, a remessa de dinheiro do exterior que constitui, praticamente, a única fonte de divisas do país; segundo, ao retornarem do exílio em países ricos, como os E.U.A. e a Holanda, muitos destes emigrantes, originários das camadas mais pobres, trazem consigo um razoável pé-de-meia, galgando posições sociais que jamais atingiriam se permanecessem no arquipélago. Apesar da pobreza do país, aqui não se nota os desníveis sociais que são dramáticos no Brasil e em outros países latino-americanos. As construções pobres da periferia das maiores cidades são bem melhores que as nossas favelas, e alagados, são construções de pedra, edificadas em terrenos estáveis.
Hoje, Cabo Verde é uma das mais novas repúblicas africanas, com apenas cinco anos de vida. Poderia ter vendido sua posição estratégica no Atlântico aos americanos ou russos e assegurado uma cômoda subsistência. Preferiu, porém, o não alinhamento. Ao assumirem as rédeas da nação, os novos dirigentes alertaram o mundo para a situação crítica em que se encontrava o país depois de cinco séculos de dominação colonial. Os organismos internacionais, liderados pela ONU, e muitos países diretamente se propuseram ajudar Cabo Verde a sair da situação em que se encontrava. Graças a esta ajuda e ao espírito de luta dos cabo-verdianos foram plantados alguns milhões de árvores, construídas mais de 5.000 represas e irrigadas quase 2.000 ha de terrenos agrícolas em apenas cinco anos. É dentro deste programa de ajuda internacional que aqui estou, em missão da UNESCO, para conjuntamente com as autoridades locais, organizar o inventário dos bens culturais do país e elaborar um plano de ação visando sua salvaguarda. A este propósito devo dizer que arquitetura civil de Cabo Verde é muito semelhante à do Brasil: grandes sobrados urbanos e “morgadios” que lembram os nossos engenhos de açúcar, com casas-grandes, capelas e instalações de serviços. Mas o arquipélago conserva vestígios de igrejas góticas manuelinas, do século XV, que o Brasil nunca possuiu.
Se existem semelhanças entre a nossa terra e este arquipélago, há também divergências, e a mais surpreendente destas é constatar que a Bahia com seu misticismo, sua música, sua indumentária ritual e cozinha é muito mais África do que Cabo Verde.

SSA: “A TARDE”, 13/01/1981.

PS – Este artigo resultou da primeira missão realiza pela UNESCO ao país depois de sua independência de Portugal. O meu relatório, reproduzido na Revista ECDJ, nº 10, Coimbra, mar. 2007, seria uma das peças chaves para a inclusão da Cidade Velha, ou Ribeira Grande de Santiago, na Lista do Patrimônio Mundial, em 2009.


Últimos Artigos