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A lei (federal) de uso do solo e a preservação urbana
Em julho do ano passado, o Comitê Brasileiro do ICOMOS realizou um colóquio
no Rio de Janeiro para discutir duas minutas de anteprojetos de leis que o
governo federal pretendia enviar ao Congresso e que tinham reflexos sobre a
política de preservação. Uma delas referia-se ao uso do solo urbano e a outra
dava nova disciplina às desapropriações. O texto do primeiro, elaborado pelo
Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (1976), estava sendo encaminhado às
instituições interessadas para receber sugestões. Não tinha ainda passado pelo
crivo de Hely Lopes Meirelles e Miguel Reale, que eliminou tudo aquilo que
pudesse ser considerado inconstitucional. Não houve, contudo, grandes alterações
na elaboração da PL 775/83. Naquela oportunidade apresentei uma comunicação sob
o título “Um conceito arcaico de preservação de bens culturais em dois novos
anteprojetos de lei”.
O texto recentemente enviado ao Congresso tem. sem dúvida, o grande mérito de
introduzir instrumentos eficazes de combate a especulação imobiliária, à
semelhança de legislações já adotadas, há várias décadas, em outros países
europeus. Se por um lado dá ao município tais poderes, retira outros ao ampliar
o controle da União sobre os mesmos, especialmente nas regiões metropolitanas. A
matéria é por si mesma polêmica.
Nossa intenção é avaliar, aqui, apenas os efeitos que a nova lei poderá ter
sobre a preservação do caráter de nossas cidades. Esta é, aliás, uma das
intenções da legislação proposta (Art. 2º itens IX e X). Os outros aspectos da
lei têm sido analisados por especialistas mais familiarizados com o tema. Como
tive oportunidade de expor na referida comunicação, os dois textos legais pecam
por insistir numa política preservacionista do tipo passivo, congelador, que não
incentiva a autoconservação, senão que trata o patrimônio construído como objeto
intangível, como veremos a seguir.
A nova lei classifica os centros e setores históricos como áreas de “urbanização
restrita”, o que é um simplismo (Art. 12º, parágrafo 2º). Procura-se, assim,
reduzir toda a problemática sócio-econômica, físico-ambiental e simbólica dos
centros históricos à proibição de novas construções nesses setores. Nós baianos
temos uma longa experiência neste campo e sabemos que este tipo de ação
restritiva, que se limita ao tombamento, não é capaz de evitar a deterioração de
bairros inteiros, como o Pelourinho, Maciel, Carmo, Conceição da Praia, etc. Sua
deterioração resulta, fundamentalmente, da obsolescência física e funcional de
seus edifícios e da marginalização social destes bairros. Sua preservação
implica num processo contínuo de conservação e rerciclagem funcional capaz de
adaptá-los às novas condições de vida social. As novas construções podem, sim,
ter um papel importante nesse processo com o cuidado de não ferir a harmonia dos
conjuntos.
Esses setores, com toda a sua riqueza e complexidade, deveriam constituir uma
categoria especial de áreas urbanas objeto de intervenção pública, contando com
os instrumentos indispensáveis a promover a melhoria das condições de vida de
seus habitantes e a preservação dos seus valores culturais e ambientais. No que
toca à política de preservação urbana, a grande inovação da futura lei é a
figura da transferência do direito de construir (Art. 10°), cuja aplicação
favorecerá mais a preservação de áreas de interesse paisagístico do que os
setores históricos.
Através deste mecanismo, os municípios poderão criar parques urbanos e praças em
terrenos baldios sem desembolso. Para tal, basta que o plano de desenvolvimento
urbano da cidade estabeleça coeficientes de aproveitamento baixos, mas não
inferior á um, tanto para a área que se pretende preservar quanto para aquelas
que deverão receber os “créditos” de construção. Mas, como a transferência de
direitos de construir é em grande parte aleatória, este mecanismo se constitui
em um fator complicador ao processo de planejamento urbano. Porderão surgir, na
periferia das cidades, bairros em que se misturam espigões e casas térreas,
altas e baixas densidades.
A mesma figura jurídica, quando aplicada a áreas de interesse histórico, tem
efeito quase nulo. A transferência de direito de construir não carreará,
necessariamente, nenhum recurso para a conservação ou requalificação destas
áreas. Os proprietários desses imóveis ao venderem seus direitos de construir
para terceiros preferirão aplicar tal recursos em investimentos mais rentáveis,
como os do mercado financeiro.
É bem verdade que a futura lei faculta ao proprietário gozar do mesmo direito de
compensação se doar seu imóvel para a prefeitura. Este procedimento, se
generalizado, poderá gerar mudanças funcionais muito profundas no bairro e
reduzir sua população fixa. Em outras palavras, alterar o caráter do mesmo. Uma
forma de evitar tais inconvenientes seria tornar compulsória a aplicação desses
recursos não só no parcelamento e urbanização de glebas baldias (Art. 29º), como
na reabilitação de imóveis deteriorados, pois uma das formas mais dissimuladas
de especulação com edifícios tombados é favorecer seu arruinamento de modo que
cesse o objeto do tombamento e o lote volte a ter seu valor venal sem
restrições. Pode-se, inclusive, prever que com a aprovação da lei se dará uma
grande corrida pela aquisição de imóveis tombados ou invadidos com o fito de
especular com o direito de construir, o que não trará nenhum benefício para os
mesmos, pelo contrário, já que os imóveis deixarão de ser objetos de uso para se
transformar em objetos de troca.
Um aspecto positivo da transferência do direito de construir é tirar do
instituto de tombamento o caráter de uma expropriação branca e consequentemente
diminuir a reação dos proprietários contra o mesmo. Mas isto ocorrerá
especialmente no caso de imóveis tombados isoladamente, pois as prefeituras
tratarão de adotar nos centros e setores históricos coeficientes de
aproveitamento muito baixos como forma de evitar o processo complicado de
compensação destes proprietários emoutras áreas urbanas. Restam ainda a questão
de como se aplicará este mecanismo às cidades tombadas integralmente? Há várias
no Brasil e, inclusive, municípios inteiros, como Porto Seguro e Santa Cruz
Cabrália na Bahia e Parati, no Rio de Janeiro.
Uma outra figura que na prática terá pouca eficácia é o direito de preempção
(Art. 32º) ou preferência da prefeitura na aquisição de imóvel de interesse
cultural ou ambiental para o desenvolvimento urbano. Este dispositivo já existe
na legislação federal de proteção aos bens culturais, Decreto-Lei n.° 25, de
1937, mas esbarra na falta de recursos do poder público para efetuar a
transação. Se isto ocorre com o governo federal, que dizer do municipal. Devemos
ainda considerar que os complexos mecanismos previstos no anteprojeto de lei de
uso do solo urbano só poderão ser aplicados a cidades com um eficiente sistema
de planificação urbana, e poucas cidades brasileiras possuem tal requisito. É
preciso lembrar que mesmo cidades cabeças de regiões metropolitanas não possuem
um plano diretor. Salvador é uma delas.
Não queroos negar os méritos da nova lei, mas apenas enfatizar que ela, por si
só, não irá resolver os complexos problemas da preservação do patrimônio
construído, e que é urgente a elaboração de uma legislação específica de
preservação cidades e setores urbanos. O Decreto-Lei nº 25, que regula a
preservação dos bens culturais, vai completar brevemente meio-século, e foi
criado para salvaguardar imóveis isolados e bens móveis, embora tenha sido
utilizado, pósteriormente, para tombar cidades e até municípios inteiros.
Cidades são organismos vivos, dinâmicos, que exigem métodos de preservação
ativos, participativos. Não é possível se continuar a conceber estes setores
como áreas de “urbanização restrita”.
(P.S. – O PL 775/83, depois de muita discução daria origem ao Estatuton da
Cidade, Lei 10.257/01).
SSA: A Tarde, 31/05/1983.