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A lei (federal) de uso do solo e a preservação urbana

  • 31 de Maio de 1983

Em julho do ano passado, o Comitê Brasileiro do ICOMOS realizou um colóquio no Rio de Janeiro para discutir duas minutas de anteprojetos de leis que o governo federal pretendia enviar ao Congresso e que tinham reflexos sobre a política de preservação. Uma delas referia-se ao uso do solo urbano e a outra dava nova disciplina às desapropriações. O texto do primeiro, elaborado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (1976), estava sendo encaminhado às instituições interessadas para receber sugestões. Não tinha ainda passado pelo crivo de Hely Lopes Meirelles e Miguel Reale, que eliminou tudo aquilo que pudesse ser considerado inconstitucional. Não houve, contudo, grandes alterações na elaboração da PL 775/83. Naquela oportunidade apresentei uma comunicação sob o título “Um conceito arcaico de preservação de bens culturais em dois novos anteprojetos de lei”.
O texto recentemente enviado ao Congresso tem. sem dúvida, o grande mérito de introduzir instrumentos eficazes de combate a especulação imobiliária, à semelhança de legislações já adotadas, há várias décadas, em outros países europeus. Se por um lado dá ao município tais poderes, retira outros ao ampliar o controle da União sobre os mesmos, especialmente nas regiões metropolitanas. A matéria é por si mesma polêmica.
Nossa intenção é avaliar, aqui, apenas os efeitos que a nova lei poderá ter sobre a preservação do caráter de nossas cidades. Esta é, aliás, uma das intenções da legislação proposta (Art. 2º itens IX e X). Os outros aspectos da lei têm sido analisados por especialistas mais familiarizados com o tema. Como tive oportunidade de expor na referida comunicação, os dois textos legais pecam por insistir numa política preservacionista do tipo passivo, congelador, que não incentiva a autoconservação, senão que trata o patrimônio construído como objeto intangível, como veremos a seguir.
A nova lei classifica os centros e setores históricos como áreas de “urbanização restrita”, o que é um simplismo (Art. 12º, parágrafo 2º). Procura-se, assim, reduzir toda a problemática sócio-econômica, físico-ambiental e simbólica dos centros históricos à proibição de novas construções nesses setores. Nós baianos temos uma longa experiência neste campo e sabemos que este tipo de ação restritiva, que se limita ao tombamento, não é capaz de evitar a deterioração de bairros inteiros, como o Pelourinho, Maciel, Carmo, Conceição da Praia, etc. Sua deterioração resulta, fundamentalmente, da obsolescência física e funcional de seus edifícios e da marginalização social destes bairros. Sua preservação implica num processo contínuo de conservação e rerciclagem funcional capaz de adaptá-los às novas condições de vida social. As novas construções podem, sim, ter um papel importante nesse processo com o cuidado de não ferir a harmonia dos conjuntos.
Esses setores, com toda a sua riqueza e complexidade, deveriam constituir uma categoria especial de áreas urbanas objeto de intervenção pública, contando com os instrumentos indispensáveis a promover a melhoria das condições de vida de seus habitantes e a preservação dos seus valores culturais e ambientais. No que toca à política de preservação urbana, a grande inovação da futura lei é a figura da transferência do direito de construir (Art. 10°), cuja aplicação favorecerá mais a preservação de áreas de interesse paisagístico do que os setores históricos.
Através deste mecanismo, os municípios poderão criar parques urbanos e praças em terrenos baldios sem desembolso. Para tal, basta que o plano de desenvolvimento urbano da cidade estabeleça coeficientes de aproveitamento baixos, mas não inferior á um, tanto para a área que se pretende preservar quanto para aquelas que deverão receber os “créditos” de construção. Mas, como a transferência de direitos de construir é em grande parte aleatória, este mecanismo se constitui em um fator complicador ao processo de planejamento urbano. Porderão surgir, na periferia das cidades, bairros em que se misturam espigões e casas térreas, altas e baixas densidades.
A mesma figura jurídica, quando aplicada a áreas de interesse histórico, tem efeito quase nulo. A transferência de direito de construir não carreará, necessariamente, nenhum recurso para a conservação ou requalificação destas áreas. Os proprietários desses imóveis ao venderem seus direitos de construir para terceiros preferirão aplicar tal recursos em investimentos mais rentáveis, como os do mercado financeiro.
É bem verdade que a futura lei faculta ao proprietário gozar do mesmo direito de compensação se doar seu imóvel para a prefeitura. Este procedimento, se generalizado, poderá gerar mudanças funcionais muito profundas no bairro e reduzir sua população fixa. Em outras palavras, alterar o caráter do mesmo. Uma forma de evitar tais inconvenientes seria tornar compulsória a aplicação desses recursos não só no parcelamento e urbanização de glebas baldias (Art. 29º), como na reabilitação de imóveis deteriorados, pois uma das formas mais dissimuladas de especulação com edifícios tombados é favorecer seu arruinamento de modo que cesse o objeto do tombamento e o lote volte a ter seu valor venal sem restrições. Pode-se, inclusive, prever que com a aprovação da lei se dará uma grande corrida pela aquisição de imóveis tombados ou invadidos com o fito de especular com o direito de construir, o que não trará nenhum benefício para os mesmos, pelo contrário, já que os imóveis deixarão de ser objetos de uso para se transformar em objetos de troca.
Um aspecto positivo da transferência do direito de construir é tirar do instituto de tombamento o caráter de uma expropriação branca e consequentemente diminuir a reação dos proprietários contra o mesmo. Mas isto ocorrerá especialmente no caso de imóveis tombados isoladamente, pois as prefeituras tratarão de adotar nos centros e setores históricos coeficientes de aproveitamento muito baixos como forma de evitar o processo complicado de compensação destes proprietários emoutras áreas urbanas. Restam ainda a questão de como se aplicará este mecanismo às cidades tombadas integralmente? Há várias no Brasil e, inclusive, municípios inteiros, como Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália na Bahia e Parati, no Rio de Janeiro.
Uma outra figura que na prática terá pouca eficácia é o direito de preempção (Art. 32º) ou preferência da prefeitura na aquisição de imóvel de interesse cultural ou ambiental para o desenvolvimento urbano. Este dispositivo já existe na legislação federal de proteção aos bens culturais, Decreto-Lei n.° 25, de 1937, mas esbarra na falta de recursos do poder público para efetuar a transação. Se isto ocorre com o governo federal, que dizer do municipal. Devemos ainda considerar que os complexos mecanismos previstos no anteprojeto de lei de uso do solo urbano só poderão ser aplicados a cidades com um eficiente sistema de planificação urbana, e poucas cidades brasileiras possuem tal requisito. É preciso lembrar que mesmo cidades cabeças de regiões metropolitanas não possuem um plano diretor. Salvador é uma delas.
Não queroos negar os méritos da nova lei, mas apenas enfatizar que ela, por si só, não irá resolver os complexos problemas da preservação do patrimônio construído, e que é urgente a elaboração de uma legislação específica de preservação cidades e setores urbanos. O Decreto-Lei nº 25, que regula a preservação dos bens culturais, vai completar brevemente meio-século, e foi criado para salvaguardar imóveis isolados e bens móveis, embora tenha sido utilizado, pósteriormente, para tombar cidades e até municípios inteiros. Cidades são organismos vivos, dinâmicos, que exigem métodos de preservação ativos, participativos. Não é possível se continuar a conceber estes setores como áreas de “urbanização restrita”.
(P.S. – O PL 775/83, depois de muita discução daria origem ao Estatuton da Cidade, Lei 10.257/01).

SSA: A Tarde, 31/05/1983.


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