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Alfândega restaurada é a terceira casa do Mercado Modelo

  • 11 de Dezembro de 1984

A recuperação do prédio da Alfândega Nova de Salvador, atual Mercado Modelo, após o incêndio que o destruiu na madrugada de 10 de janeiro de 1984, é tipicamente uma intervenção de restauro de reintegração, segundo a classificação de Giovannoni. O fogo destruiu basicamente a estrutura horizontal do edifício: tesouras do telhado e assoalhos de madeira. Reintegração de elementos novos, sem a preocupação de promover uma recomposição pseudo-estilística, ou reconstrução histórica inautêntica, à maneira dos restauradores do século passado, senão de reabilitar o edifício para que ele possa prosseguir desempenhando sua função social e, desta forma, alcançar as gerações futuras. Uma operação muito mais reparadora que estetizante, fazendo um paralelo com a cirurgia plástica.

Critérios de restauração

Os elementos originais, mesmo danificados, como as cantarias internas, foram estabilizados e mantidos à vista, sem nenhum mascaramento. Da mesma forma, os elementos novos não procuraram imitar os antigos. O desenho destes novos elementos estruturais foi orientado por duas preocupações: a de que eles se integrassem ao antigo, sem falseá-lo, e a de que eles pudessem diminuir o risco de novos acidentes e consequentes danos ao monumento. A história do Mercado Modelo, o antigo e o atual, é marcada por incêndios, dois dos quais (1969 e 1984) o destruíram quase completamente. O terceiro princípio adotado foi o da reversibilidade dos elementos introduzidos, de modo a permitir, no futuro, outros usos do edifício e intervenções conservativas. Preferiu-se, por esta razão, utilizar elementos pré-fabricados na reposição daqueles destruídos pelo fogo.
Esta postura estriba-se em critérios consagrados em documentos internacionais, como a Carta de Veneza: “... todo trabalho de complementação, reconhecido indispensável, deve distinguir-se da composição arquitetônica, levando a marca de nosso tempo. Os elementos destinados a substituir as partes danificadas ou inexistentes devem integrar-se harmoniosamente ao conjunto, embora se diferenciando das partes originais, a fim de que a restauração não falcifique o documento da arte e da história”.
No corpo principal do edifícil, onde os riscos são maiores devido ao material estocado — artesanato de fibras, couro e madeira —, a restauração teve que atender a requisitos de segurança muito estritos, o que implicou na introdução de um número maior de elementos de desenho novo. Na rotunda, a parte mais característica do edifício, podemos fazer uma reconstrução com um mínimo de materiais novos, devido ao menor risco de sua utilização. A existência de um minucioso levantamento realizado pelo arquiteto Roberto Mendez y Mendez, da Surcap, pouco antes do incêndio, permitiu a reconstrução ex-novo da rotunda. Trezentos e cinquenta metros cúbicos de pau-d’arco, especialmente trazidos do Pará, foram consumidos em sua reconstrução. Mesmo assim, alguns elementos, como a velha cornija da varanda, eliminada em 1968, tiveram que ser repostos em materiais novos. Sua cobertura, primitivamente em cobre, foi refeita, por razões econômicas, em chapas de alumínio de igual coloração e desenho.
Procuramos adotar na restauração da antiga Alfândega todos os princípios da chamada arquitetura de risco. Confinamos os locais de maior perigo, como cozinhas e boxes de artesanato, com divisórias incombustíveis; compartimentamos verticalmente o edifício, mediante uma laje de concreto, de modo a dificultar a propagação do fogo, adotamos estruturas metálicas na cobertura e escadas com proteção térmica e deslocamos para o exterior a central de gás (GLP). Conseguimos, com isto, reduzir consideravelmente a carga combustível do edifício e proporcionar um isolamento parcial do risco.

Consolidação estrutural

Se a intervenção realizada na Alfândega foi, prioritariamente, uma restauração de reintegração, não podemos esquecer que ela implicou, previamente, em uma restauração de consolidação das ruínas do incêndio. O prédio apresentava lesões em sua estrutura de alvenaria, anteriores ao incêndio e muitos de seus arcos foram fissurados ou tiveram suas lesões agravadas com o desabamento de peças do telhado. As cantarias, por outro lado, foram gravemente afetadas pelo fogo.
Para evitar o prosseguimento da rotação das fachadas, foram as mesmas solidarizadas à grelha formada por cintas travesseiros e vigas que suportam os pré-moldados do piso do 1º andar. Esta solidarização se fez mediante a perfuração de seus muros, introdução das ferragens e ancoragem com resina epóxi. Para evitar sobrecarregamento dos pilares internos, o estruturalista Moacir Leite preferiu utilizar vigas isostáticas para sustentação dos pré- moldados do piso do 1º andar. Os arcos, muito fissurados, foram assim poupados de qualquer sobrecarga. As principais fissuras das fachadas e arcos foram consolidadas com resina epoxídica, enquanto as lesões das abóbadas do subsolo receberam injeções de concreto.

O problema das cantarias

O tratamento adotado com relação a pedra esfoliada pela ação do fogo foi de apenas consolidação. As cicatrizes provocadas pelo fogo conferiram ao espaço interno do edifício uma dramaticidade que não podia ser escamoteada. As próteses se restringiram apenas à recomposição de alguns elementos das cercaduras de janelas e portas e a reintegração de fragmentos perdidos de plintos e ábacos das colunas da rotunda.
A estabilização dos arenitos e calcários, realizada com amorosa dedicação peta equipe de Carlos Barbosa, foi efetivada a dois níveis. A consolidação superficial foi realizada com resina termoplástica (acrílica), por ser a que menos altera a coloração e textura da pedra. A consolidação em profundidade foi alcançada mediante injeção, sob baixa pressão, de resina epoxídica visando colmatar as fissuras profundas e solidarizar os fragmentos superficiais ao âmago não-fissurado da cantaria. Nos casos mais graves e na implantação de próteses, fez-se perfurações de 10 a 20cm e introduziu-se tirantes antiexpulsivos de latão. Nos pilares internos do corpo principal foram fixados cerca de 7.000 fragmentos de cantaria, e injetadas três toneladas de resina epoxídica. Próteses em concreto, reproduzindo as impostas primitivas, foram reintegradas a alguns arcos dos dois pavimentos para efeito didático. As cercaduras de “lioz”, especialmente importadas de Lisboa, também sofreram a ação do fogo. Além da sua consolidação, foi necessário repor 805 fragmentos perdidos, indispensáveis à boa vedação das esquadrias.
Na rotunda, apesar do fogo não produzir esfoliações nas colunas de arenito, foram feitos vários trabalhos de restauração. Uma coluna geminada fissurada pela queda de uma das vigas foi totalmente desmontada, consolidada e remontada. Injeções profundas de resina epoxídica foram feitas em duas outras colunas estruturalmente abaladas durante a remoção mecânica dos escombros do incêndio. Quatrocentos e vinte fragmentos desaparecidos dos plintos, fustes e capitéis das colunas toscanas da rotunda foram reintegrados com próteses do mesmo material.
Para a execução destas próteses fez-se vir de Santa Luz o mais qualificado clã de canteiros ainda existente na Bahia. Mestre Boaventura Abreu e seus filhos talharam arenitos e calcários com a mesma maestria e paciência dos construtores de catedrais medievais. Após a consolidação, um jato de microesferas de vidro revelou a tez rosada das delicadas molduras de janelas lisboetas e reforçou o perfil robusto e moreno das colunas autóctonas.

O que se ganha com a restauração

Ainda que não se possa falar da descoberta, pois sua existência era conhecida desde pelo menos 1970, quando se converteu a Alfândega em Mercado, a grande contribuição das atuais obras é a recuperação e valorização do subsolo da Alfândega. Este grande espaço, construído abaixo do lençol d’água, encontrava-se recoberto por uma camada de lodo de 60cm. Sanitários construídos durante as obras de 1970/1971 jogavam seus dejetos diretamente nele, e pelo cano, destinado a drenar suas águas para o mar, penetravam o óleo e o lodo da Rampa do Mercado. Limpo e livre detes inconvenientes, o subsolo será aberto, pela primeira vez, à visitação pública. Uma passarela flutuando sobre seu piso líquido, que refletem suas abóbadas de pedra, permitirá que o visitante percorra suas galerias, convertidas em uma grande exposição sobre o edifício e a cultura popular baiana.
Do ponto de vista funcional, a restauração manteve o “layout” adotado em 1971, mas deu-se maior espaço às atividades culturais. O pavimento térreo da rotunda foi liberado das pequenas cozinhas para dar lugar a tablados onde serão exibidas rodas de samba, capoeira, desafios etc. Os pintores primitivos não precisarão mais apunhar-se nas escadas, pois possuem, agora, uma galeria de arte. A circulação horizontal e vertical foi ampliada, resultando em maior comodidade e segurança em caso de novos sinistros. Quatro grandes clarabóias de telhas de vidro deram um toque de luz e cor ao outrora escuro edifício.
As obras não se restringiriam ao monumento. A Praça Visconde de Cairu, criada em 1914, com a demolição da Velha Alfândega, havia sido transformada, no período 1955/59, em terminal de ônibus e posteriormente em grande estacionamento. A praça é agora devolvida a seu antigo público: poetas de cordel, lambe-lambes, saltimbancos, capoeiristas, e mágicos. Desenhamos em seu piso a elevação do edifício da Alfândega, velha prática dos construtores medievais redescoberta pelo arquiteto argentino Miguelangel Roca.

Desfazendo tabus

A construção da Alfândega Nova de Salvador com seus 8.400m2 se prolongou por mais de sete anos (1856/1863). Sua reconstrução foi feita em apenas seis meses. Com isto, se rompe o velho adágio de que obra de restauração só tem prazo para ser iniciada. Pode-se inclusive, afirmar que nesta obra se aplicou a mais avançada tecnologia de restauração já empregada no País. E se isto ocorreu foi exatamente devido ao prazo limitado. Perfuramos muros de 1.75m de espessura, para consolidação estrutura ou passagem de dutos, com sondas rotativas em poucas horas, o que artesanalmente demandaria semanas e provocaria grandes danos ao edifício. Com a utilização em grande escala de modernas técnicas de consolidação estrutural da pedra, pilares gravemente lesionados pelo fogo foram recuperados, evitando-se sua substituição. Para execução da estrutura de madeira da rotunda, mandou-se vir de Pernambuco os mais exímios carpinteiros do País.
Mas o cumprimento de tão exíguo prazo só foi possível devido a íntima cooperação estabelecida entre o setor público e privado. De um lado, nós do Inventário de Proteção do Acervo Cultural, órgão da Secretaria da Indústria, Comércio e Turismo, encarregados pela prefeitura de elaborar o projeto de restauração, contávamos com a assessoria de dois dos mais conceituados escritórios de engenharia da cidade: Leite e Miranda, estruturalistas, e Thales de Azevedo Filho, instalações especiais. A Conder, por sua vez, encarregada da execução da obra, selecionou uma das mais competentes empresas de construção do País, a Soares Leone S/A e se fez assessorar pela Tecnosolo no controle tecnológico da obra.
Só com uma organização verdadeiramente empresarial, como a montada na restauração da antiga Alfândega e atual Mercado Modelo, será possível enfrentar o grave problema do nosso centro histórico. Qualquer outra tentativa de solução estará condenada ao fracasso. Neste sentido, não apenas o mercado, mas a sua restauração pode ser considerada modelo.

SSA: A Tarde, 11/12/1984


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