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Alfândega restaurada é a terceira casa do Mercado Modelo
A recuperação do prédio da Alfândega Nova de Salvador, atual Mercado Modelo,
após o incêndio que o destruiu na madrugada de 10 de janeiro de 1984, é
tipicamente uma intervenção de restauro de reintegração, segundo a classificação
de Giovannoni. O fogo destruiu basicamente a estrutura horizontal do edifício:
tesouras do telhado e assoalhos de madeira. Reintegração de elementos novos, sem
a preocupação de promover uma recomposição pseudo-estilística, ou reconstrução
histórica inautêntica, à maneira dos restauradores do século passado, senão de
reabilitar o edifício para que ele possa prosseguir desempenhando sua função
social e, desta forma, alcançar as gerações futuras. Uma operação muito mais
reparadora que estetizante, fazendo um paralelo com a cirurgia plástica.
Critérios de restauração
Os elementos originais, mesmo danificados, como as cantarias internas, foram
estabilizados e mantidos à vista, sem nenhum mascaramento. Da mesma forma, os
elementos novos não procuraram imitar os antigos. O desenho destes novos
elementos estruturais foi orientado por duas preocupações: a de que eles se
integrassem ao antigo, sem falseá-lo, e a de que eles pudessem diminuir o risco
de novos acidentes e consequentes danos ao monumento. A história do Mercado
Modelo, o antigo e o atual, é marcada por incêndios, dois dos quais (1969 e
1984) o destruíram quase completamente. O terceiro princípio adotado foi o da
reversibilidade dos elementos introduzidos, de modo a permitir, no futuro,
outros usos do edifício e intervenções conservativas. Preferiu-se, por esta
razão, utilizar elementos pré-fabricados na reposição daqueles destruídos pelo
fogo.
Esta postura estriba-se em critérios consagrados em documentos internacionais,
como a Carta de Veneza: “... todo trabalho de complementação, reconhecido
indispensável, deve distinguir-se da composição arquitetônica, levando a marca
de nosso tempo. Os elementos destinados a substituir as partes danificadas ou
inexistentes devem integrar-se harmoniosamente ao conjunto, embora se
diferenciando das partes originais, a fim de que a restauração não falcifique o
documento da arte e da história”.
No corpo principal do edifícil, onde os riscos são maiores devido ao material
estocado — artesanato de fibras, couro e madeira —, a restauração teve que
atender a requisitos de segurança muito estritos, o que implicou na introdução
de um número maior de elementos de desenho novo. Na rotunda, a parte mais
característica do edifício, podemos fazer uma reconstrução com um mínimo de
materiais novos, devido ao menor risco de sua utilização. A existência de um
minucioso levantamento realizado pelo arquiteto Roberto Mendez y Mendez, da
Surcap, pouco antes do incêndio, permitiu a reconstrução ex-novo da rotunda.
Trezentos e cinquenta metros cúbicos de pau-d’arco, especialmente trazidos do
Pará, foram consumidos em sua reconstrução. Mesmo assim, alguns elementos, como
a velha cornija da varanda, eliminada em 1968, tiveram que ser repostos em
materiais novos. Sua cobertura, primitivamente em cobre, foi refeita, por razões
econômicas, em chapas de alumínio de igual coloração e desenho.
Procuramos adotar na restauração da antiga Alfândega todos os princípios da
chamada arquitetura de risco. Confinamos os locais de maior perigo, como
cozinhas e boxes de artesanato, com divisórias incombustíveis; compartimentamos
verticalmente o edifício, mediante uma laje de concreto, de modo a dificultar a
propagação do fogo, adotamos estruturas metálicas na cobertura e escadas com
proteção térmica e deslocamos para o exterior a central de gás (GLP).
Conseguimos, com isto, reduzir consideravelmente a carga combustível do edifício
e proporcionar um isolamento parcial do risco.
Consolidação estrutural
Se a intervenção realizada na Alfândega foi, prioritariamente, uma restauração
de reintegração, não podemos esquecer que ela implicou, previamente, em uma
restauração de consolidação das ruínas do incêndio. O prédio apresentava lesões
em sua estrutura de alvenaria, anteriores ao incêndio e muitos de seus arcos
foram fissurados ou tiveram suas lesões agravadas com o desabamento de peças do
telhado. As cantarias, por outro lado, foram gravemente afetadas pelo fogo.
Para evitar o prosseguimento da rotação das fachadas, foram as mesmas
solidarizadas à grelha formada por cintas travesseiros e vigas que suportam os
pré-moldados do piso do 1º andar. Esta solidarização se fez mediante a
perfuração de seus muros, introdução das ferragens e ancoragem com resina epóxi.
Para evitar sobrecarregamento dos pilares internos, o estruturalista Moacir
Leite preferiu utilizar vigas isostáticas para sustentação dos pré- moldados do
piso do 1º andar. Os arcos, muito fissurados, foram assim poupados de qualquer
sobrecarga. As principais fissuras das fachadas e arcos foram consolidadas com
resina epoxídica, enquanto as lesões das abóbadas do subsolo receberam injeções
de concreto.
O problema das cantarias
O tratamento adotado com relação a pedra esfoliada pela ação do fogo foi de
apenas consolidação. As cicatrizes provocadas pelo fogo conferiram ao espaço
interno do edifício uma dramaticidade que não podia ser escamoteada. As próteses
se restringiram apenas à recomposição de alguns elementos das cercaduras de
janelas e portas e a reintegração de fragmentos perdidos de plintos e ábacos das
colunas da rotunda.
A estabilização dos arenitos e calcários, realizada com amorosa dedicação peta
equipe de Carlos Barbosa, foi efetivada a dois níveis. A consolidação
superficial foi realizada com resina termoplástica (acrílica), por ser a que
menos altera a coloração e textura da pedra. A consolidação em profundidade foi
alcançada mediante injeção, sob baixa pressão, de resina epoxídica visando
colmatar as fissuras profundas e solidarizar os fragmentos superficiais ao âmago
não-fissurado da cantaria. Nos casos mais graves e na implantação de próteses,
fez-se perfurações de 10 a 20cm e introduziu-se tirantes antiexpulsivos de
latão. Nos pilares internos do corpo principal foram fixados cerca de 7.000
fragmentos de cantaria, e injetadas três toneladas de resina epoxídica. Próteses
em concreto, reproduzindo as impostas primitivas, foram reintegradas a alguns
arcos dos dois pavimentos para efeito didático. As cercaduras de “lioz”,
especialmente importadas de Lisboa, também sofreram a ação do fogo. Além da sua
consolidação, foi necessário repor 805 fragmentos perdidos, indispensáveis à boa
vedação das esquadrias.
Na rotunda, apesar do fogo não produzir esfoliações nas colunas de arenito,
foram feitos vários trabalhos de restauração. Uma coluna geminada fissurada pela
queda de uma das vigas foi totalmente desmontada, consolidada e remontada.
Injeções profundas de resina epoxídica foram feitas em duas outras colunas
estruturalmente abaladas durante a remoção mecânica dos escombros do incêndio.
Quatrocentos e vinte fragmentos desaparecidos dos plintos, fustes e capitéis das
colunas toscanas da rotunda foram reintegrados com próteses do mesmo material.
Para a execução destas próteses fez-se vir de Santa Luz o mais qualificado clã
de canteiros ainda existente na Bahia. Mestre Boaventura Abreu e seus filhos
talharam arenitos e calcários com a mesma maestria e paciência dos construtores
de catedrais medievais. Após a consolidação, um jato de microesferas de vidro
revelou a tez rosada das delicadas molduras de janelas lisboetas e reforçou o
perfil robusto e moreno das colunas autóctonas.
O que se ganha com a restauração
Ainda que não se possa falar da descoberta, pois sua existência era conhecida
desde pelo menos 1970, quando se converteu a Alfândega em Mercado, a grande
contribuição das atuais obras é a recuperação e valorização do subsolo da
Alfândega. Este grande espaço, construído abaixo do lençol d’água, encontrava-se
recoberto por uma camada de lodo de 60cm. Sanitários construídos durante as
obras de 1970/1971 jogavam seus dejetos diretamente nele, e pelo cano, destinado
a drenar suas águas para o mar, penetravam o óleo e o lodo da Rampa do Mercado.
Limpo e livre detes inconvenientes, o subsolo será aberto, pela primeira vez, à
visitação pública. Uma passarela flutuando sobre seu piso líquido, que refletem
suas abóbadas de pedra, permitirá que o visitante percorra suas galerias,
convertidas em uma grande exposição sobre o edifício e a cultura popular baiana.
Do ponto de vista funcional, a restauração manteve o “layout” adotado em 1971,
mas deu-se maior espaço às atividades culturais. O pavimento térreo da rotunda
foi liberado das pequenas cozinhas para dar lugar a tablados onde serão exibidas
rodas de samba, capoeira, desafios etc. Os pintores primitivos não precisarão
mais apunhar-se nas escadas, pois possuem, agora, uma galeria de arte. A
circulação horizontal e vertical foi ampliada, resultando em maior comodidade e
segurança em caso de novos sinistros. Quatro grandes clarabóias de telhas de
vidro deram um toque de luz e cor ao outrora escuro edifício.
As obras não se restringiriam ao monumento. A Praça Visconde de Cairu, criada em
1914, com a demolição da Velha Alfândega, havia sido transformada, no período
1955/59, em terminal de ônibus e posteriormente em grande estacionamento. A
praça é agora devolvida a seu antigo público: poetas de cordel, lambe-lambes,
saltimbancos, capoeiristas, e mágicos. Desenhamos em seu piso a elevação do
edifício da Alfândega, velha prática dos construtores medievais redescoberta
pelo arquiteto argentino Miguelangel Roca.
Desfazendo tabus
A construção da Alfândega Nova de Salvador com seus 8.400m2 se prolongou por
mais de sete anos (1856/1863). Sua reconstrução foi feita em apenas seis meses.
Com isto, se rompe o velho adágio de que obra de restauração só tem prazo para
ser iniciada. Pode-se inclusive, afirmar que nesta obra se aplicou a mais
avançada tecnologia de restauração já empregada no País. E se isto ocorreu foi
exatamente devido ao prazo limitado. Perfuramos muros de 1.75m de espessura,
para consolidação estrutura ou passagem de dutos, com sondas rotativas em poucas
horas, o que artesanalmente demandaria semanas e provocaria grandes danos ao
edifício. Com a utilização em grande escala de modernas técnicas de consolidação
estrutural da pedra, pilares gravemente lesionados pelo fogo foram recuperados,
evitando-se sua substituição. Para execução da estrutura de madeira da rotunda,
mandou-se vir de Pernambuco os mais exímios carpinteiros do País.
Mas o cumprimento de tão exíguo prazo só foi possível devido a íntima cooperação
estabelecida entre o setor público e privado. De um lado, nós do Inventário de
Proteção do Acervo Cultural, órgão da Secretaria da Indústria, Comércio e
Turismo, encarregados pela prefeitura de elaborar o projeto de restauração,
contávamos com a assessoria de dois dos mais conceituados escritórios de
engenharia da cidade: Leite e Miranda, estruturalistas, e Thales de Azevedo
Filho, instalações especiais. A Conder, por sua vez, encarregada da execução da
obra, selecionou uma das mais competentes empresas de construção do País, a
Soares Leone S/A e se fez assessorar pela Tecnosolo no controle tecnológico da
obra.
Só com uma organização verdadeiramente empresarial, como a montada na
restauração da antiga Alfândega e atual Mercado Modelo, será possível enfrentar
o grave problema do nosso centro histórico. Qualquer outra tentativa de solução
estará condenada ao fracasso. Neste sentido, não apenas o mercado, mas a sua
restauração pode ser considerada modelo.
SSA: A Tarde, 11/12/1984