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O Efeito Contrapartida
A Lei da Contrapartida (nº 3.993 de 29/06/89) coloca em questão três pontos
fundamentais para o futuro da cidade: viabilidade do sistema de planejamento
urbano, acesso ao mercado de terras e preservação do patrimônio urbano. O
primeiro item é, sem dúvida, o mais grave, do ponto de vista político e urbano.
Ao delegar ao Executivo poder de alterar o Plano Urbanístico da Cidade, o
Legislativo não só abdicou de uma das suas mais fundamentais atribuições, como
feriu frontalmente a Constituição em seu Artigo 182. Uma vez que se alteram os
parâmetros urbanísticos de uma cidade, desfigura-se seu plano diretor. Não há
como negar.
Em nota oficial de 18/08/89 o Sr. Prefeito, confirmando a rendição da Câmara de
Vereadores, afirma que a fiscalização do Executivo será feita pela comunidade,
através do Conselho de Desenvolvimento Urbano (Condurb), órgão integrado por
representantes de 15 entidades das mais representativas do município, mas omite
que na mesma data da aprovação da lei em questão, ele baixou o Dec. 8 355/89,
que alterou o Regimento da Condurb. A partir de entãi, seus membros são
escolhidos pelo Prefeito em listas tríplices apresentadas pelas instituições
representadas e estas, por sua vez, só têm direito à vista a processos se o
Prefeito assim o decidir (Art 9). Além dos mais, o Conselho passa a se reunir a
portas fechadas e não existe mais quórum para decisões. Em suma, é inconcebível
a concentração de poder em mãos do prefeito.
Na mesma nota, tenta o Prefeito comparar a presente norma com leis adotadas em
outras cidades americanas, europeias e, inclusive, brasileiras, que facilitam a
transferência do direito de construir de sítios de interesse cultural ou natural
para outras áreas com infraestrutura ociosa. Esclareça-se que esta foi a única
saída para a preservação daqueles sítios onde não existe o instituto do
tombamento. Note-se, também, que aquele mecanismo não altera a densidade
demográfica urbana, já que o direito de construir é apenas transferido. No nosso
caso, ao invés de transferência, promove-se a densificação com o objetivo de
criar recursos para a formação de um fundo para a realização de obras.
O artigo 1º da nova lei é claro: “ A PMS poderá receber de proprietários de
terrenos contidos em planos que definam novos parâmetros urbanísticos para o
município, propostas de
pagamento de contrapartida em espécie para a utilização dos novos parâmetros”.
Ora, pode-se inferir que, a partir de agora, a PMS perde a isenção necessária a
planejar cientificamente a cidade, pois passa a ser diretamente beneficiária da
verticalização, o que vale dizer, sócia da reprodução do solo urbano.
Anuncia ainda o Sr Prefeito que a nova lei irá beneficiar não só a orla marítima
como outros bairros, a exemplo de Nazaré. Barbalho, Tororó, Ondina e Brotas
(sic). Além do inevitável sombreamento, poluição, sobrecarga das redes de
serviços e congestão urbana, a densificação se fará sobre terrenos de estrutura
parcelaria mínima, remanescente de uma ocupação unidomiciliar, criando conflitos
insuperáveis que rebaixam ainda mais a qualidade de vida, já que o aumento de
parâmetros urbanos é inversamente proporcional ao padrão de vida urbana. No caso
específico da orla marítima é incompreensível que se promova em 1989 sua
densificação sem uma prévia reurbanização que inclua o remembramento parcelar, o
redesenho viário e saneamento básico como foi feito na Barra de Tijuca, depois
da lição de Copacabana.
A segunda questão se refere à acessibilidade ao mercado de terras urbanas. De há
muito vem a indústria de construção se queixando da hipervalorização dos
terrenos urbanos. A densificação seria, segundo ela, a única solução para
viabilizar os investimentos imobiliários, já que seu custo seria dividido por um
número maior de compradores. Tal raciocínio peca por desconsiderar mecanismos
elementares de mercado. Uma vez que é decretado o aumento do gabarito, os preços
dos lotes sobem na mesma proporção, porque seus proprietários se apropriam, por
antecipação, do benefício anunciado. Em 24 horas os valores de terrenos de toda
orla marítima sofreriam uma explosão, mesmo nas áreas não afetadas pela Lei da
Contrapartida. Este é, aliás, o efeito mais perverso do ponto de vista econômico
da nova lei. Na medida em que se cria uma expectativa de elevação do gabarito,
aumenta a retenção dos terrenos empurrando seus preços para cima. Este processo
atinge todo o mercado, já que a lei não exclui qualquer parte da cidade.
Como se não bastasse, a inflação de expectativa, manda o decreto 8.381, que
regulamenta a lei 3.993 que a contrapartida mínima deverá ser igual ao aumento
de área construída em função dos novos parâmetros multiplicada pelo valor do
terreno na região. O equívoco da lei é supor que os donos da terra iriam abrir
mão desta conquista em benefício dos incorporadores e da PMS. A esta altura, o
custo do terreno para edificação sofre majoração não apenas cumulativa senão
exponencial (quadrada). Isto tornaria inteiramente inviável a construção civil,
não fosse o fato de grande parte dos terrenos da orla marítima, a grande
fronteira imobiliária, já está em mãos de umas poucas imobiliárias e
construtoras que visam as fortunas acumuladas com a ciranda financeira e a
inflação. Este é, porém, um mercado circunstancial e restrito. A euforia durará
pouco, porque o estoque das construtoras é limitado e o aquecimento dos terrenos
deflagrados pela nova lei é irreversível e generalizado. A contrapartida virou
um bumerangue.
Partindo do pressuposto que a propriedade fundiária urbana em Salvador é só
parcialmente compartida pela indústria da construção, a Lei da Contrapartida não
é um bom negócio. A partir de agora, a construção civil terá que conviver com o
piso cada vez alto dos terrenos e o teto cada vez mais baixo de uma classe média
proletarizada. A maior acessibilidade à terra urbana e, consequente, o
barateamento da habitação só será possível diante a incorporarão de novas áreas
urbanizadas e do controle dos preços com estoques reguladores, como é feito na
maioria dos países desenvolvidos, mediante a formação de bancos de terras
municipais e empresas urbanizadoras. Sem isso, tendemos a nos transformar em uma
imensa San Gimignano cabocla formada por torres fortificadas em meio ao favelão
livre, já que na medida em que se fecha o mercado mais se incentivam as invasões
e loteamentos clandestinos.
O terceiro e último ponto diz respeito à preservação do nosso patrimônio urbano
cultural e natural. A grande contradição da nova lei é pretender preservar os
sítios históricos à custa dos naturais, que são sintomaticamente omitidos na
lei. Uns e outros constituem as duas faces da mesma moeda: o patrimônio urbano.
Não é por acaso que o processo de tombamento que preservou o nosso Centro
Histórico salvaguardou também a orla marítima (SPHAN, Proc. 464T e 484T, de
1959). Nesta política de despir um santo para vestir outro, procura-se compensar
a verticalização da orla marítima acenando com uma fantasiosa conta de US$40
milhões ano para a recuperação do Centro Histórico. Para conquistar o público,
montou-se uma pantomima em que os atores trocam com frequência de papéis. Assim,
a Ademi se transforma em arauto da preservação do patrimônio da humanidade,
enquanto a Fundação Gregório de Mattos defende a verticalização da orla.
De qualquer modo, se a lei não for impugnada ou esquecida, como muitas outras,
precisamos saber o que será feito com o ouropel da contrapartida. Até o momento,
não se conhece qualquer plano da Prefeitura para o Centro Histórico, que tem
sistematicamente desprezado a experiência baiana no setor, não obstante os 20
anos de trabalho do IPAC, da experiência acadêmica da UFBA, que realiza o único
mestrado em restauração do país e do CECRE (UFBA) ter sido eleito pela UNESCO
como centro de excelência para formação de restauradores para a América Latina e
África Lusofone.
O problema do Centro Histórico, ao contrário do que a Fundação Gregório de
Mattos imagina (“A Nova Orla”, A Tarde 27/08/89), não se resolve apenas com uma
nova tecnologia que, além de não absorver mão-de-obra local, não se mostrou nem
mais barata, nem mais ágil que as tradicionais, como demonstra a atual situação
da Faec. É preciso que a comunidade baiana conheça o que está sendo preparado
para o Centro Histórico, em toda a sua complexidade multicultural, social e
econômica, para que não sejamos, mais uma vez, tomados de assalto.
A abertura de uma nova fronteira imobiliária significará a drenagem de todos os
recursos privados e públicos em direção à orla, em detrimento não só do Centro
Histórico como de toda a cidade. O atual estado de degradação a que chegou o
nosso Centro Histórico, como de resto toda a cidade, se deve ao projeto
alucinado do capital financeiro e imobiliário com a conivência dos poderes
públicos, de produzir uma “nova Bahia”, esvaziando e marginalizando a antiga.
Tiraram-lhe as atividades administrativas, produtiva, de laser e portuária para
criar novos polos, mas não conseguiram senão transformar Salvador em um
subúrbio-dormitório de Candeias e Simões Filho, sem grandeza, acéfalo e sem
caráter, antevista pelo velho Gregório,
“Triste Bahia, ó quão dessemelhante.
A mim foi-me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante”.
SSA: A Tarde 2/09/1989
PS – A Lei Municipal 3.993/89, ou Lei da Contrapartida, do prefeito Fernando
José Guimarães Rocha, dispunha sobre suposta obtenção de recursos para a
recuperação de sítios históricos do Município de Salvador. Como se previa, o
Transcom só serviu para favorecer a especulação imobiliária.