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A primeira reforma urbana de Salvador

  • 31 de Agosto de 1990

Fundada, ao invés de desenvolvida espontaneamente, como a maioria das cidades coloniais portuguesas de sua época, Salvador nasceu da régua e do compasso, mas logo abandonaria tal regularidade, que ainda hoje persiste na colina da Sé, para desenvolver o único modelo de ocupação coerente com seu território, a rede de vias de cumeadas. O casario se coagulou em bairros perfeitamente definidos, ora espreitando a baia, ora os vales úmidos que os separavam. Dentre estes bairros, a Praia, como era conhecida o Comércio, era uma exceção. Empresada entre o mar e a Montanha, a Praia era primordialmente ocupada por trapiches, comércio exportador/importador, alguns comerciantes e gente do mar: pescadores, marinheiros, embarcadiços, calafates, etc.
Este modelo atendeu perfeitamente às necessidades da sociedade colonial, mas não atenderia às novas exigências de uma cidade portuária que, pouco a pouco, foi forçada a ocupar a função que lhe foi reservada na nova ordem econômica internacional. Não se passou nem uma década da abertura dos portos brasileiros, ato significativamente firmado em Salvador, quando da passagem de D. João VI, para surgir o primeiro projeto de modernização de Salvador. Deveu-se a D. Marcos de Noronha e Brito, 8º Conde dos Arcos, a iniciativa pioneira, em 1816, de modernização do porto de Salvador. Segundo seu projeto, deveria ser aberto um canal no istmo de Itapagipe ligando a Jequitaia ao Porto dos Mastros, atual Alagados. Ai deveriam ser abrigadas as embarcações de cabotagem, desafogando o porto da cidade para os barcos de longo curso. As obras foram paralisadas devido as lutas de independência, mas retomadas, em 1845, durante a administração do General Francisco José de Souza Soares Andrea, sem sucesso.
Em meados do século passado, o porto de Salvador, apesar do aumento do comércio, era o mesmo do período colonial. O bairro da Praia não ia além da Rua Portugal. O porto constituído de uma série de pequenos trapiches, com seus piers, estendia-se da Gamboa até Itapagipe. A maioria destes armazéns e respectivas marinhas eram de propriedade privada. Com a construção da Alfândega Nova, construiu-se o Cais do Pedroso, um prolongamento do Cais das Amarras, estendendo-se a faixa aterrada da Praia até a atual Rua Miguel Calmon. Se, por um lado, o comércio como um todo reivindicava um porto seguro capaz de receber navios de grande calado e armazéns espaçosos, os proprietários de trapiches temiam a perda de seus privilégios e resistiam com todas as suas forças a essa ideia.

A resistência dos trapicheiros

Entre 1854 e 1891, 14 projetos de melhoramento do porto foram submetidos ao poder público, mas não saíram do papel devido ao receio do governo de enfrentar os trapicheiros. Em 1854, João Gonçalves Ferreira, um próspero negociante local, propôs ao Governo Imperial dilatar o Bairro Comercial até o Forte de São Marcelo e através do aterro e da criação de canais atingiriam os navios. O projeto firmado pelo engenheiro André Przewpdowski foi considerado visionário. O Decreto Imperial nº 1.746, de 13/10/1869, que criava facilidades para a modernização dos portos brasileiros, encorajou novas iniciativas. Descendentes de João Gonçalves Ferreira, julgando-se com direitos adquiridos, acrescentaram uma variante do projeto do pai, comprometendo-se a construir cinco docas e grandes armazéns, entre o Cais das Amarras, atual Rua Miguel Calmon, e o Forte do Mar, além do alargamento, através de aterro, do trecho compreendido entre a Associação Comercial e a Estação da Calçada.
Inexplicavelmente, o Governo postergou o início das obras até 1872, quando foi criada em Londres, a Bahia Docks Company Limited tendo à frente o Barão de Mauá e outros sócios ingleses. O projeto foi reformulado pelo Eng. Charles Neate, que havia atuado na construção do porto do Rio de Janeiro, mas não logrou aprovação até 1887, quando a companhia foi dissolvida em razão de a concessão ter sido declarada caduca. Julgado de excelência técnica e financeira. Também o projeto de Edmund Penley airro comercialCox, embora tenha recebido o apoio de grande parte dos comerciantes e agentes de companhias de navegação, não obteve aprovação.
O aumento da produção de cacau, que assumia a liderança na pauta de exportações da Bahia, aliado às novas exigências das embarcações a vapor e ao advento na República com sua estrutura financeira descentralizada, trouxeram a baila novamente a necessidade de modernização do porto. Em 1891, nova autorização foi concedida pelo Governo Provisório da República a Augusto Candido Herache e Frederico Merei que a transferiram a Cia. Docas e Melhoramentos da Bahia, depois encampada pela Codeba. Até 1900, nada se fez porque os ministérios da Marinha e da Guerra não aprovaram o traçado do quebra-mar que, partindo do Arsenal de Marinha, passava pelo Forte do Mar. Sem esta obra não se podia iniciar o cais. Naquele ano, o ministro de Viação, Sr. Severino Vieira (baiano), alterou o contrato dando maiores vantagens à concessionária e estabelecendo o prazo de um ano para início das obras e oito para sua conclusão. Nada foi feito em razão da não-aprovação do projeto pelos ministérios militares, enquanto o Governo Federal, através de sete decretos e leis, postergava o início dos trabalhos.
Somente em 1905, por intervenção do ministro da Justiça, o baiano José Joaquim Seabra, junto ao presidente Rodrigues Alves, o contrato é reformulado com a Cia Docas e Melhoramentos da Bahia, dando-se viabilidade ao empreendimento. Pouco depois, o comendador Augusto José Ferreira, ex-diretor do Banco Mauá em Montevidéu, assumia o controle da empresa e levantaria financiamento externo para a realização das obras que foram iniciadas no ano seguinte. Esses trabalhos transformam a face da Praia, com a incorporação ao bairro de uma grande área conquistada ao mar e alargamento de ruas para permitir articular a ferrovia ao porto.
Seabra, como ministro da Justiça foi quem deu cobertura à ação decidida e, até certo ponto truculenta, de Osvaldo Cruz e de Francisco Pereira Passos, no saneamento e reforma do Rio de Janeiro. Com os mesmos métodos, decidiu intervir em Salvador. Iniciava-se assim, o grande ciclo de transformações urbanas por que passou Salvador, na primeira metade deste século, e que se concluiria com a demolição da igreja da Sé, em 1933, para criação do terminal de bondes elétricos da Companhia Linha Circular.
A Companhia Docas da Bahia, além de construir 1.750 m de cais, dois quebra-mares, 14 armazéns (30.000 m²) e nova sede para a Capitania dos Portos, obrigava-se a aterrar e urbanizar uma área de 80 ha. com a entrega de rua calçadas drenadas e iluminadas eletricamente. Assumindo Seabra o Ministério da Viação, no mandato presidencial do Marechal Hermes da Fonseca, imprimiu grande impulso às obras do porto de Salvador e promoveu a revisão do contrato da concessionária com inclusão de cláusula que previa a construção de uma grande avenida entre o Cais do Ouro e a Estação Ferroviária da Jequitaia.
Obtém ainda um crédito de 2.605.936$000 sob a responsabilidade do Presidente da República, já que o Tribunal de Contas negou-lhe registro para a remodelação do Bairro Comercial, prevista com o fim de facilitar o serviço do novo cais e estabelecer melhor a comunicação entre o porto e a Cidade Alta. Os recursos para estas obras provinham da taxa de 2% de ouro sobre as importações, criada pelo Decreto 5.550, de 06/01/1905, e destinada a custear os juros do capital investido, antes do início de operação do porto. Uma planta de remodelação do Comércio foi aprovada pelo Decreto nº 8.750 de 29/05/1911, que declarou de utilidade pública prédios e terrenos assinalados na mesma. Nem mesmo a sede da Associação Comercial da Bahia ficou fora desta relação.

Novo papel da cidade

Quando Seabra assumiu o governo da Bahia, no período de 1912 a1916 já tinha na verdade equacionado com o apoio da iniciativa privada e grupos financeiros internacionais a transformação da cidade de modo a adequá-la a seu novo papel de exportadora de matérias-primas. Na medida em que as obras do porto e a ampliação da Cidade Baixa entravam em compasso de espera, em consequência da I Grande Guerra, José Joaquim Seabra punha em marcha a parte final de seu plano, aquela não bancado pela iniciativa privada, ou seja, a criação de vias urbanas adequadas aos novos meios de transportes de modo a facilitar o acesso ao seu distrito comercial renovado e ampliado.
É preciso compreender que o traumático alargamento da avenida Sete de Setembro, quando foram demolidos, pela inépcia dos técnicos, alguns monumentos religiosos e preciosos conjuntos de casas e sobrados de uma cidade até então intocada, não foi apenas motivado pelo desejo de macaquear a capital federal, senão parte de uma reforma muito mais ampla de infra estruturação territorial e urbana da Bahia que incluía a integração dos sistemas ferroviários e marítimo e a incorporação de 800.000 m² de terrenos ganhos ao mar no bairro mais dinâmico e acanhado da cidade, ou seja, a Praia.
Este processo foi deflagrado em 1905, quando Seabra era ministro da Justiça e desenvolvido com o seu apoio como ministro da Viação. Mais que uma cópia, a reforma urbana de Salvador, como as reformas do Rio de Janeiro e do Recife, visava a inserção do Brasil no mercado internacional, tendo como um dos principais protagonistas, nos três casos, Seabra. Embora os trabalhos de melhoramento do porto só tivessem sido concluídos na década de 30, já em 1913 eram inaugurados 360 m de cais, três armazéns para onde passou todo o serviço de carga e descarga de mercadorias, tornando ociosa a Alfândega Velha. Esse ponto tinha, por outro lado, uma grande solicitação de tráfego. O elevador hidráulico despejava ali grandes levas de pedestres e por ali passava o bonde da Cia Trilhos Econômicos, que ligava a Conceição da Praia a Itapagipe.
Pouco antes, havia sido constituído o Mercado Modelo ao lado da antiga alfândega o que constituía um fator a mais de congestionamento. Pós-se então em execução o projeto de melhoria urbana aprovado em 1911, que previa a criação de uma praça no espaço resultante da demolição da Alfândega Velha e de outros edifícios que ocupavam o espaço compreendido entre a antiga e a nova alfandega, atual Mercado Modelo. O bicentenário Edifício da Alfândega Velha foi dos primeiros a ser demolido ainda, em 1914. Outros edifícios, localizados no pátio das duas alfândegas, só foram demolidos mais tarde.
Em 1915, a Cia Docas foi acusada de querer apropriar-se daqueles terrenos e transformar o edifício da guardamoria em seu escritório. Mas a 9 de agosto do mesmo ano o chefe de fiscalização do Porto instou a Companhia Docas a demolir a a guardamoria e uma ala de armazéns que ainda restava. O novo espaço não urbanizado, para onde se pretendeu transferir o monumento a Riachuelo, ameaçava o prolongamento da atual Rua Miguel Calmon e logo se transformou em um lamaçal.
Não obstante em 1918 o inspetor da Alfândega, Antonio Linhoff de Brito, ter criado uma comissão de funcionários e despachantes para angariarem recursos do comércio com vistas ao ajardinamento daquela área. Dois anos depois a situação era a mesma e a União, através da Capitania dos Portos, doou formalmente a praça a Prefeitura, que iniciou a 1º de outubro sua pavimentação em paralelepípedos. Na mesma oportunidade, o executivo municipal rebatizou a praça com o nome de Visconde de Cairu, em homenagem ao grande inspirador das transformações que conduziriam a uma ordem capitalista, em substituição ao regime colonialista.
Perto dali, na esquina das atuais ruas da Bélgica e Miguel Calmon, funcionava o chamado Consulado. “Ao longo da Rua da Praia estão localizados a Alfândega e o Consulado, pelo qual todos os produtos da região devem passar previamente para serem exportados. Alguns dos trapiches vizinhos são de uma imensa extensão e dizem figurar entre os maiores do mundo”, observavam os ingleses Klldder e Fletcher.
A avenida Arsenal da Marinha, outra obra prevista no projeto de remodelação do Bairro Comercial só seria executada após o governo de Seabra devido à resistência provocada pelas desapropriações. Em 1917, o deputado Octavio Mangabeira empenhava-se pela abertura da avenida que, passando em frente ao Mercado Modelo, ligava o porto a Preguiça. Além da melhoria de circulação, a nova via resolveria um problema sanitário, com a eliminação do lamaçal que ali se formou. Somente com o parecer do consultor geral da República, Dr. Rodrigo Octavio, sobre os casos suscitados com a mudança do projeto e consequentes desapropriações, o problema foi resolvido.
No que se refere à avenida Jequitaia, projeto do Dr. Edgard Gordilho, ex-engenheiro-chefe da Comissão Fiscal, pouco se adiantou durante o primeiro governo de Seabra. Em 1919, decidiu-se pelo seu adiamento e pelo início da ligação do Chemins de Fer ao porto, o que exigiu várias demolições na Rua do Pilar. Alterou-se mais uma vez o contrato com a concessionária do porto para atender à nova prioridade, incluindo-se entre as obrigações da companhia a conclusão do cais do Mercado Modelo, inaugurado em 1922, na segunda administração de Seabra. Até aquela época a concessionária não havia feito senão demolir alguns prédios da garganta.do Xixi e aterrar o leito da avenida até Água de Meninos. A avenida Jequitaia só seria inaugurada mais tarde, com o nome de Av. Frederico Pontes, representante da Cia Docas da Bahia.
As obras do porto, apesar de terem assumido um ritmo mais lento, com a eclosão da Grande Guerra, não pararam. Em 1919 já haviam sido incorporadas ao Bairro Comercial 33 ha de aterro, 37.979 m de ruas pavimentadas 438 m de linhas de esgoto, sete armazéns, 2.400 m de cais de diferentes calados, 10 guindastes a vapor e elétricos e quatro linhas férreas nas ruas do cais.
As áreas aterradas desnecessárias do porto permaneceram desocupadas até 1922, quando foram alienadas pela Cia. Docas da Bahia e Imobiliária da Bahia, do mesmo grupo. Esta por sua vez vendeu a maioria dos lotes a bancos, seguradoras e escritórios de importação e exportação, dando origem a uma das áreas mais densas e homogêneas da cidade, o setor bancário. Suas primeiras construções datam do final da década de 20 e início da seguinte: Banco Econômico da Bahia (1928), Banco do Brasil (1934) e Instituto do Cacau (1935). Ainda no primeiro governo de Seabra avançou-se na reforma do Bairro Comercial. O alargamento atingiu apenas o lado ímpar da rua, isto é, aquele voltado para o poente, mas exigiu a modernização de velhos sobrados, com a criação de novas fachadas ecléticas, ao gosto da época, ou foram demolidos.

Novos edifícios

A Ampliação do porto e a renovação Bairro Comercial, comportariam também um programa de construção dos novos edifícios públicos em substituição a outros menos adequados, como o da Capitania dos Portos e os Correios, instalados precariamente em casas pertencentes à Venerável Ordem 3ª de São Francisco, e os mercados São João e Santa Bárbara, que perderam seus acessos marítimos, com a ampliação do porto. A edificação da sede da Capitania dos Portos estava prevista no contrato social, mas a construção dos Correios e do Mercado Modelo por conta da concessionária, foi uma imposição do governo federal, introduzida em 1907. Era ministro da Viação, na época, o baiano Miguel Calmon de Pin e Almeida.
A nova sede dos Correios e Telégrafos foi inaugurado em 1914 no local do antigo Mercado São João, situado entre as ruas Portugal e Miguel Calmon, atual escritório da Rede Ferroviária Federal. Suas obras custaram 634.000$000, dos quais 200.000$000 foram bancados pela União. Os Correios funcionaram neste local até 6 de fevereiro de 1938, quando foram transferidos para o novo prédio situado na Praça da Inglaterra, construído em terreno doado pela Companhia Docas. Os dois mercados foram, por sua vez, substituídos pelo Mercado Modelo mantendo a continuidade do abastecimento alienar através de gêneros produzidos no Recôncavo e nas ilhas é transportada por saveiros para a capital.
Como em outras oportunidades, havíamos perdido o compasso da história. Procuramos nos modernizar para uma economia que na verdade já estava caduca. A reforma do porto e da cidade não conseguiria ressuscitar as exportações de açúcar, algodão, diamantes e carbonados. O bonde moderno, cujo terminal nos custou a Sé tricentenária, seria vendido como ferro velho três décadas depois. A partir dos anos 50, com a exploração do petróleo, entramos num novo ciclo econômico. De cidade porto nos transformamos em terminal rodoviário, condenando as docas e a Cidade Baixa ao abando sem ao menos ocuparmos a metade da imensa área roubada à baía.

A reforma da Cidade Baixa é um dos temas tratados pelo autor em seu A Alfandega e o Mercado, Memória e Restauração. Salvador: Seplantec 1985.

SSA: A Tarde Cultural, de 31/03/1990


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