Artigos de Jornal
Uma cidade com duas cabeças
Uma nota perdida numa das últimas páginas do 2° caderno de A Tarde me
provocou uma inútil reflexão urbana. Na década de 60, quando tive escritório no
Comércio, aquela área era a mais nobre da cidade. Ali estavam não só a “city"
baiana como as melhores lojas de artigos masculinos e os mais refinados
restaurantes de Salvador, como o do Clube do Comércio, no terraço do Banco da
Bahia, o aconchegante Caravelle e o Restaurante de Maria de São Pedro, tão
afinado em seu cardápio baiano a ponto de ser responsável pelas recepções do
Palácio da Aclamação.
Hoje, o Comércio, além de sede de alguns bancos, é um imenso terminal de ônibus
suburbanos, bazar de produtos de segunda qualidade e feira de camelôs, que
ocupam suas calçadas com barracas, tabuleiros, fogareiros e caldos de cana.
Seria a morte do "distrito central de negócios", para usar o conceito dos
urbanistas americanos, um fato inevitável, diante do nascimento de novos núcleos
comerciais, como a Barra e o Iguatemi? Creio que não. Isto não ocorre nem nos
países desenvolvidos, nem no terceiro mundo. Copacabana e a Barra da Tijuca,
embora sub-centros locais, não conseguiram desbancar a Av. Rio Branco. Porto
Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, São Paulo e as demais capitais brasileiras,
não obstante uma relativa descentralização, mantêm a hegemonia de seus centros
tradicionais.
Paradoxalmente, uma das mais pobres cidades do Nordeste se daria ao luxo de
criar um novo centro hegemónico, o que vale dizer financeiro, coisa que nem
cidades imensamente mais ricas e congestionadas, como Paris, Nova Iorque, ou
Tóquio fizeram. Digo luxo, porque um novo centro demanda uma incalculável
inversão pública em infra-estrutura, implica no sucateamento dos investimentos
consolidados no centro precedente e desorganiza todo o mercado imobiliário da
cidade.
O que é pior, estamos implantando um novo centro sem planejamento urbano ou
setorial, num "laissez-faire” démodé, que toca a insensatez, diante da crise em
que vivemos e da falência da Prefeitura que é, em última instância, a
responsável pela instalação desta infraestrutura. Até um determinado momento, o
programa de descentralização, discutível em seus objetivos e implementação,
obedeceu a uma diretriz. Mas, deflagrada a corrida especulativa, abre-se mão de
qualquer controle, deixando a cidade á mercê dos operadores imobiliários.
No início, mais que um programa de descentralização, tratava-se de um programa
de desconcentração, já que visava, declaradamente, expandir a cidade e ampliar a
fronteira imobiliária. Assim, durante os anos 70, fez-se enormes investimentos
viários periféricos no chamado Acesso Norte e na abertura de avenidas de vale
que convergiam para ele. Reestruturou-se, assim, a rede viária urbana em função
de um novo centro distribuidor, criando-se as condições para a formação de um
novo setor central de comércio, embora apartado quase 8 km do Centro
Administrativo da Bahia, criado contemporaneamente. Marchávamos, assim, para uma
cidade com dois centros, um político e outro econômico.
Mas este segundo centro nunca foi formulado explicitamente, a ponto de a
Prefeitura, sempre a última a saber das coisas, considerar os terrenos
compreendidos entre as duas avenidas mais valorizadas da cidade, a Tancredo
Neves e Antônio Carlos Magalhães, como área residencial, domiciliar, de expansão
urbana. Aprovam-se loteamentos de baixa densidade, como o Caminho das Arvores e
o Itaigara, em pleno coração do novo centro de negócios, na maior bobeira
imobiliária do século, por falta de uma diretriz clara e explícita.
Não obstante os grandes investimentos feitos no local, o novo centro que se
formou em surdina, já que não consta de nenhum plano ou legislação municipal,
está longe de ter a infra-estrutura necessária, a começar pela viária, já
saturada e sem possibilidade de ampliação, uma vez que dimensionada em função de
uma ocupação unidomiciliar. Quanto aos demais serviços, não é demais lembrar que
o CAB, 16 anos depois de inaugurado, ainda se ressente de falta de esgoto,
telefones e transporte coletivo.
O outro lado menos risonho da moeda foi o sucateamento do atual centro de
Salvador. Não me refiro apenas ao histórico, mas ao dinâmico, o Comércio.
Nenhuma outra área da cidade recebeu, em tempo algum, maior soma de
investimentos que aquela: construção de porto moderno, armazéns, dois
quebra-mares, avenida articulando o porto á ferrovia e incorporação á cidade de
80ha de aterro urbanizado. Tudo realizado nas três primeiras décadas do século.
Nos anos 60, foram feitos novos investimentos, como a construção de dois
generosos acessos ao bairro, o Túnel Américo Simas e a Av. do Contorno. Mais
recentemente, a Coelba dotou a área com subestação e rede subterrâneas, únicas
na cidade, com reserva técnica que ultrapassa os 50%, e a prefeitura implementou
o maior estacionamento da cidade, o PAM.
Ali, instituições financeiras construíram magníficas sedes, como a Seguradora
Aliança da Bahia e os bancos da Bahia, Lar Brasileiro, Baneb, Brasil, Nordeste
e, mais recentemente, o Citibank e o Econômico. Trata-se de um bairro cuja
maioria das construções não tem mais de 40 anos e dispõe da melhor
infraestrutura da cidade, em boa parte subutilizada.
Todo este imenso patrimônio imobiliário teve o seu valor reduzido, em termos
reais, á terça parte, em apenas dez anos, por força da criação do novo setor de
comércio. Até aqui nenhuma surpresa. A especulação Imobiliária, a única força
atuante na cidade, em face da vacância do poder municipal, é um jogo: ganham
uns, perdem outros. Neste caso, porém, é difícil saber quem são os perdedores e
os ganhadores, como demonstra o conformismo dos aparentes prejudicados.
Uma nota publicada no Informe Imobiliário de A Tarde, de 14 do corrente mês, dá
conta que um novo setor financeiro com 14 torres está sendo lançado na Av.
Tancredo Neves, já tendo a adesão de numerosos bancos e a aprovação municipal.
Esse é o tiro de misericórdia que faltava ao Comércio e consequentemente, de
toda a área central, cuja vitalidade formal que ainda retém se deve
exclusivamente ao setor financeiro. Que função está reservada a esta área? A
mesma do Pelourinho?
O novo centro financeiro, que não consta de nenhum plano ou legislação de uso do
solo, mas já está todo vendido, situa-se em uma área que não dispõe de um só
metro quadrado de praça, área verde, ou estacionamento público e á margem de uma
saída de estrada já enfartada, antes mesmo de ocupada e estendida até Aracaju.
Quem permitiria a transferência da "city" londrina ou do "down town"
nova-iorquino? Em Salvador, porém, a mudança do "Comércio", sintomaticamente não
provoca qualquer reação. Uma notícia como esta merecia, ao menos, uma manchete
de primeira página, afinal ela afeta a vida de dois milhões de pessoas, a
memória de nossos antepassados e ó futuro da cidade. Haja nervos de aço.
SSA: A Tarde, 29/09/1991