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Uma cidade com duas cabeças

  • 29 de Setembro de 1991

Uma nota perdida numa das últimas páginas do 2° caderno de A Tarde me provocou uma inútil reflexão urbana. Na década de 60, quando tive escritório no Comércio, aquela área era a mais nobre da cidade. Ali estavam não só a “city" baiana como as melhores lojas de artigos masculinos e os mais refinados restaurantes de Salvador, como o do Clube do Comércio, no terraço do Banco da Bahia, o aconchegante Caravelle e o Restaurante de Maria de São Pedro, tão afinado em seu cardápio baiano a ponto de ser responsável pelas recepções do Palácio da Aclamação.
Hoje, o Comércio, além de sede de alguns bancos, é um imenso terminal de ônibus suburbanos, bazar de produtos de segunda qualidade e feira de camelôs, que ocupam suas calçadas com barracas, tabuleiros, fogareiros e caldos de cana. Seria a morte do "distrito central de negócios", para usar o conceito dos urbanistas americanos, um fato inevitável, diante do nascimento de novos núcleos comerciais, como a Barra e o Iguatemi? Creio que não. Isto não ocorre nem nos países desenvolvidos, nem no terceiro mundo. Copacabana e a Barra da Tijuca, embora sub-centros locais, não conseguiram desbancar a Av. Rio Branco. Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, São Paulo e as demais capitais brasileiras, não obstante uma relativa descentralização, mantêm a hegemonia de seus centros tradicionais.
Paradoxalmente, uma das mais pobres cidades do Nordeste se daria ao luxo de criar um novo centro hegemónico, o que vale dizer financeiro, coisa que nem cidades imensamente mais ricas e congestionadas, como Paris, Nova Iorque, ou Tóquio fizeram. Digo luxo, porque um novo centro demanda uma incalculável inversão pública em infra-estrutura, implica no sucateamento dos investimentos consolidados no centro precedente e desorganiza todo o mercado imobiliário da cidade.
O que é pior, estamos implantando um novo centro sem planejamento urbano ou setorial, num "laissez-faire” démodé, que toca a insensatez, diante da crise em que vivemos e da falência da Prefeitura que é, em última instância, a responsável pela instalação desta infraestrutura. Até um determinado momento, o programa de descentralização, discutível em seus objetivos e implementação, obedeceu a uma diretriz. Mas, deflagrada a corrida especulativa, abre-se mão de qualquer controle, deixando a cidade á mercê dos operadores imobiliários.
No início, mais que um programa de descentralização, tratava-se de um programa de desconcentração, já que visava, declaradamente, expandir a cidade e ampliar a fronteira imobiliária. Assim, durante os anos 70, fez-se enormes investimentos viários periféricos no chamado Acesso Norte e na abertura de avenidas de vale que convergiam para ele. Reestruturou-se, assim, a rede viária urbana em função de um novo centro distribuidor, criando-se as condições para a formação de um novo setor central de comércio, embora apartado quase 8 km do Centro Administrativo da Bahia, criado contemporaneamente. Marchávamos, assim, para uma cidade com dois centros, um político e outro econômico.
Mas este segundo centro nunca foi formulado explicitamente, a ponto de a Prefeitura, sempre a última a saber das coisas, considerar os terrenos compreendidos entre as duas avenidas mais valorizadas da cidade, a Tancredo Neves e Antônio Carlos Magalhães, como área residencial, domiciliar, de expansão urbana. Aprovam-se loteamentos de baixa densidade, como o Caminho das Arvores e o Itaigara, em pleno coração do novo centro de negócios, na maior bobeira imobiliária do século, por falta de uma diretriz clara e explícita.
Não obstante os grandes investimentos feitos no local, o novo centro que se formou em surdina, já que não consta de nenhum plano ou legislação municipal, está longe de ter a infra-estrutura necessária, a começar pela viária, já saturada e sem possibilidade de ampliação, uma vez que dimensionada em função de uma ocupação unidomiciliar. Quanto aos demais serviços, não é demais lembrar que o CAB, 16 anos depois de inaugurado, ainda se ressente de falta de esgoto, telefones e transporte coletivo.
O outro lado menos risonho da moeda foi o sucateamento do atual centro de Salvador. Não me refiro apenas ao histórico, mas ao dinâmico, o Comércio. Nenhuma outra área da cidade recebeu, em tempo algum, maior soma de investimentos que aquela: construção de porto moderno, armazéns, dois quebra-mares, avenida articulando o porto á ferrovia e incorporação á cidade de 80ha de aterro urbanizado. Tudo realizado nas três primeiras décadas do século.
Nos anos 60, foram feitos novos investimentos, como a construção de dois generosos acessos ao bairro, o Túnel Américo Simas e a Av. do Contorno. Mais recentemente, a Coelba dotou a área com subestação e rede subterrâneas, únicas na cidade, com reserva técnica que ultrapassa os 50%, e a prefeitura implementou o maior estacionamento da cidade, o PAM.
Ali, instituições financeiras construíram magníficas sedes, como a Seguradora Aliança da Bahia e os bancos da Bahia, Lar Brasileiro, Baneb, Brasil, Nordeste e, mais recentemente, o Citibank e o Econômico. Trata-se de um bairro cuja maioria das construções não tem mais de 40 anos e dispõe da melhor infraestrutura da cidade, em boa parte subutilizada.
Todo este imenso patrimônio imobiliário teve o seu valor reduzido, em termos reais, á terça parte, em apenas dez anos, por força da criação do novo setor de comércio. Até aqui nenhuma surpresa. A especulação Imobiliária, a única força atuante na cidade, em face da vacância do poder municipal, é um jogo: ganham uns, perdem outros. Neste caso, porém, é difícil saber quem são os perdedores e os ganhadores, como demonstra o conformismo dos aparentes prejudicados.
Uma nota publicada no Informe Imobiliário de A Tarde, de 14 do corrente mês, dá conta que um novo setor financeiro com 14 torres está sendo lançado na Av. Tancredo Neves, já tendo a adesão de numerosos bancos e a aprovação municipal. Esse é o tiro de misericórdia que faltava ao Comércio e consequentemente, de toda a área central, cuja vitalidade formal que ainda retém se deve exclusivamente ao setor financeiro. Que função está reservada a esta área? A mesma do Pelourinho?
O novo centro financeiro, que não consta de nenhum plano ou legislação de uso do solo, mas já está todo vendido, situa-se em uma área que não dispõe de um só metro quadrado de praça, área verde, ou estacionamento público e á margem de uma saída de estrada já enfartada, antes mesmo de ocupada e estendida até Aracaju.
Quem permitiria a transferência da "city" londrina ou do "down town" nova-iorquino? Em Salvador, porém, a mudança do "Comércio", sintomaticamente não provoca qualquer reação. Uma notícia como esta merecia, ao menos, uma manchete de primeira página, afinal ela afeta a vida de dois milhões de pessoas, a memória de nossos antepassados e ó futuro da cidade. Haja nervos de aço.

SSA: A Tarde, 29/09/1991


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