Artigos de Jornal
O porto é a porta
Durante todo o período colonial, Salvador foi um porto, uma cidade aberta
para o mundo. Não havia barco que se destinasse ao Oriente que não parasse a se
abastecesse no maior ancoradouro do Atlântico Sul. A cidade era o foco desta
enorme parábola que é o Recôncavo, para onde convergiam, em saveiros e canoas, o
açúcar, o tabaco, o marisco, a farinha, as frutas e os materiais de construção
para aqui serem consumidos ou exportados. Salvador manteve, até meados deste
século, a função portuária, exportando cacau e importando manufaturados e se
relacionando com o resto do País através da cabotagem.
A partir do final da década de 50, porém, ocorrem dois fatos que viriam mudar o
papel tradicional da cidade. Primeiro, a descentralização dos portos baianos,
com a criação do Terminal de Madre de Deus e inauguração dos portos de Ilhéus e
de Aratu; infletindo a ênfase dada pelo Plano de Metas de Juscelino Kubitschek
ao transporte rodoviário. Acrescente-se a isto a progressiva obsolescência do
Porto de Salvador, devido a falta de manutenção (assoreamento) e modernização.
Com a inauguração do asfalto da BR-116, Rio- Bahia, no início da década de 60,
Salvador troca seu acesso marítimo preferencial pelo rodoviário. Até que ponto a
decadência do Comércio é uma consequência da desativação parcial do porto, e
qual a saída?
Seu impacto talvez fosse imperceptível não estivessem em jogo outras forças, no
caso, a política de descentralização e reestruturação do espaço metropolitano,
claramente formulada no plano do Cento Industrial de Aratu - CIA. Ali já se
propõe e desenha um novo centro para a cidade expandida, ainda que este tenha
sido relocado quando da sua execução.
Assim, a nova cidade renuncia a sua condição de porto natural e se compraz em
ser apenas um terminal rodoviário, localizando seu novo centro de negócios na
convergência das duas estradas que saem da cidade: a Salvador-Feira e a Estrada
do Coco. O triangulo delimitado por aquelas estradas, que correm paralelas às
duas linhas de costa do Cabo de Santo Antonio, é o chamado “miolo” de Salvador,
que não é outra coisa senão um imenso favelão. A expansão do novo centro já
está, assim, comprometida pelo padrão viário e pela pulverização fundiária dos
loteamentos clandestinos.
A obsolescência do porto, embora possa ter contribuído para a decadência da área
central da cidade, não é a única nem a principal causa do problema, mesmo porque
o fenômeno é universal e não produziu, em nenhum outro caso, efeito semelhante.
Recife e Rio de Janeiro passam pelo mesmo processo, sem,contudo, terem mudado
seus centros.
No âmbito internacional, o aproveitamento de antigas instalações portuárias
ensejou, ao contrário, interessantes programas de revitalização de áreas
centrais, onde estão inseridas. São bem conhecidos os trabalhos realizados nas
“docks” de Londres e Roterdã, nos “water fronts” de São Francisco e Baltmore,
nos “piers” de Nova Iorque e no novo parque portuário de Barcelona. Todos estes
projetos, desenvolvidos pelas municipalidades com o concurso dos mais
importantes arquitetos locais e nacionais, têm em comum objetivos muito
precisos:
1º - restabelecer a comunicação da cidade com a água, bloqueada durante muitas
décadas e até séculos, pelas instalações portuárias;
2º - transformar estas áreas em espaços públicos ligados ao laser e à cultura,
como modo de revitalizar suas áreas vizinhas;
3º - manter o caráter portuário da área, evitando sua descaracterização.
Estes projetos foram iniciados nos anos 70, amadurecidos na discussão com a
comunidade durante 10 anos e implementados no começo dos anos 80. Em Londres e
Roterdã, a grande extensão do porto desativado permitiu a implementação de
programas habitacionais ao lado dos de laser e cultura.
Em áreas mais restritas, como as de South Street Sea Port, de Nova Iorque; Pier
39 de São Francisco, e Inner Habor de Baltimore, a ação se limitou à recuperação
de algumas ruas, como suas tabernas e velhos armazéns em ”shopping centers” do
setor central vizinho afluem nas horas de folga para comer e divertir-se.
Complementam estas instalações museus, aquários e exposição de belos veleiros e
antigos navios.
Em Barcelona, os arruinados armazéns portuários foram varridos e, em seu lugar,
criado em parque com os serviços indispensáveis à permanência dos usuários por
todo um dia, como ocorre nos finais de semana. Em todos os casos, o sucesso foi
total e seus efeitos sentidos em uma vasta área da cidade.
Um dos aspectos mais frustrantes da nova Salvador é seu desprezo pelo mar.
Estamos construindo uma cidade de costas para a baía e seu Recôncavo, que foi a
fortuna de seu povo, até o final do século passado, e o encanto dos viajantes
que por aqui passaram. Até a orla atlântica, de apelo mais mundano e recente,
foi abandonada e desprezada. O povo, porém, mantém vivo seu apreço pelo golfo,
celebrando em suas águas e ao longo de sua orla suas festas mais
representativas. Para ele, a cidade continua sendo baía, com ou sem “h”, dá no
mesmo.
A Baía de Todos os Santos e seu antigo porto possuem não apenas vocação
turística e de laser. Precisamos restaurar o papel que a baía sempre desempenhou
de integração de Salvador com o seu território. O momento é particularmente
propício. O porto está em grande parte ocioso, com o cais dos quatro primeiros
armazéns inviabilizado, devido ao assoreamento e seu prolongamento sem condições
de operar “containers” e granéis.
O Comércio é a porta obrigatória de acesso a esta baía ensolarada e navegável.
todo o ano, de imensa importância econômica e turística. A solução natural do
metrô
da Grande Salvador, correndo no leito da antiga ferrovia, como já adotaram
Recife e Porto Alegre, passa necessariamente pelo Comércio, assim como a do
transporte hidroviário para as ilhas e outros pontos do Recôncavo: CIA,
Refinaria Landulpho Alves, Termadre. O Comércio é o ponto natural de articulação
destes dois sistemas, o hidroviário e o rodoviário, com os terminais urbanos da
Lapa e Barroquinha, ligados mediante uma pequena galeria.
Sem construir novos quebra-mares ou cais, podemos instalar na área marinas e
parques náuticos, viabilizando, inclusive a visitação do notável Forte de São
Marcelo através de passarela flutuante. Ali também tem guarita terminais
hidroviários e de carga e uma central de abastecimento servida por saveiros. Em
seus armazéns podemos instalar “shopping centers” e equipamentos comunitários, a
um custo baixíssimo. Por que vamos complicar as coisas? O que não nos falta é
porto. Possuímos cerca de dois milhões de metros quadrados de águas abrigadas,
em sua maior parte ociosas.
Um projeto para o Comércio, que contemple estas questões, poderá recuperar toda
a área central de Salvador, combatendo seu principal problema, o esvaziamento
funcional. Há 25 anos só se faz tirar atividades do centro e não se investe um
só centavo. Este é um empreendimento não só economicamente viável, como
atrativo. Quando se anuncia a privatização das instalações do Porto de Salvador,
não podemos perder talvez a última chance de recuperar o núcleo matriz de uma
cidade tão marcadamente brasileira e sabiamente implantada a cavaleiro desta
baía abençoada por todos os santos e orixás. Pensemos largo.
SSA: A Tarde, 19/10/1991