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O porto é a porta

  • 19 de Outubro de 1991

Durante todo o período colonial, Salvador foi um porto, uma cidade aberta para o mundo. Não havia barco que se destinasse ao Oriente que não parasse a se abastecesse no maior ancoradouro do Atlântico Sul. A cidade era o foco desta enorme parábola que é o Recôncavo, para onde convergiam, em saveiros e canoas, o açúcar, o tabaco, o marisco, a farinha, as frutas e os materiais de construção para aqui serem consumidos ou exportados. Salvador manteve, até meados deste século, a função portuária, exportando cacau e importando manufaturados e se relacionando com o resto do País através da cabotagem.

A partir do final da década de 50, porém, ocorrem dois fatos que viriam mudar o papel tradicional da cidade. Primeiro, a descentralização dos portos baianos, com a criação do Terminal de Madre de Deus e inauguração dos portos de Ilhéus e de Aratu; infletindo a ênfase dada pelo Plano de Metas de Juscelino Kubitschek ao transporte rodoviário. Acrescente-se a isto a progressiva obsolescência do Porto de Salvador, devido a falta de manutenção (assoreamento) e modernização.

Com a inauguração do asfalto da BR-116, Rio- Bahia, no início da década de 60, Salvador troca seu acesso marítimo preferencial pelo rodoviário. Até que ponto a decadência do Comércio é uma consequência da desativação parcial do porto, e qual a saída?
Seu impacto talvez fosse imperceptível não estivessem em jogo outras forças, no caso, a política de descentralização e reestruturação do espaço metropolitano, claramente formulada no plano do Cento Industrial de Aratu - CIA. Ali já se propõe e desenha um novo centro para a cidade expandida, ainda que este tenha sido relocado quando da sua execução.
Assim, a nova cidade renuncia a sua condição de porto natural e se compraz em ser apenas um terminal rodoviário, localizando seu novo centro de negócios na convergência das duas estradas que saem da cidade: a Salvador-Feira e a Estrada do Coco. O triangulo delimitado por aquelas estradas, que correm paralelas às duas linhas de costa do Cabo de Santo Antonio, é o chamado “miolo” de Salvador, que não é outra coisa senão um imenso favelão. A expansão do novo centro já está, assim, comprometida pelo padrão viário e pela pulverização fundiária dos loteamentos clandestinos.
A obsolescência do porto, embora possa ter contribuído para a decadência da área central da cidade, não é a única nem a principal causa do problema, mesmo porque o fenômeno é universal e não produziu, em nenhum outro caso, efeito semelhante. Recife e Rio de Janeiro passam pelo mesmo processo, sem,contudo, terem mudado seus centros.

No âmbito internacional, o aproveitamento de antigas instalações portuárias ensejou, ao contrário, interessantes programas de revitalização de áreas centrais, onde estão inseridas. São bem conhecidos os trabalhos realizados nas “docks” de Londres e Roterdã, nos “water fronts” de São Francisco e Baltmore, nos “piers” de Nova Iorque e no novo parque portuário de Barcelona. Todos estes projetos, desenvolvidos pelas municipalidades com o concurso dos mais importantes arquitetos locais e nacionais, têm em comum objetivos muito precisos:

1º - restabelecer a comunicação da cidade com a água, bloqueada durante muitas décadas e até séculos, pelas instalações portuárias;

2º - transformar estas áreas em espaços públicos ligados ao laser e à cultura, como modo de revitalizar suas áreas vizinhas;

3º - manter o caráter portuário da área, evitando sua descaracterização.

Estes projetos foram iniciados nos anos 70, amadurecidos na discussão com a comunidade durante 10 anos e implementados no começo dos anos 80. Em Londres e Roterdã, a grande extensão do porto desativado permitiu a implementação de programas habitacionais ao lado dos de laser e cultura.
Em áreas mais restritas, como as de South Street Sea Port, de Nova Iorque; Pier 39 de São Francisco, e Inner Habor de Baltimore, a ação se limitou à recuperação de algumas ruas, como suas tabernas e velhos armazéns em ”shopping centers” do setor central vizinho afluem nas horas de folga para comer e divertir-se. Complementam estas instalações museus, aquários e exposição de belos veleiros e antigos navios.

Em Barcelona, os arruinados armazéns portuários foram varridos e, em seu lugar, criado em parque com os serviços indispensáveis à permanência dos usuários por todo um dia, como ocorre nos finais de semana. Em todos os casos, o sucesso foi total e seus efeitos sentidos em uma vasta área da cidade.

Um dos aspectos mais frustrantes da nova Salvador é seu desprezo pelo mar. Estamos construindo uma cidade de costas para a baía e seu Recôncavo, que foi a fortuna de seu povo, até o final do século passado, e o encanto dos viajantes que por aqui passaram. Até a orla atlântica, de apelo mais mundano e recente, foi abandonada e desprezada. O povo, porém, mantém vivo seu apreço pelo golfo, celebrando em suas águas e ao longo de sua orla suas festas mais representativas. Para ele, a cidade continua sendo baía, com ou sem “h”, dá no mesmo.

A Baía de Todos os Santos e seu antigo porto possuem não apenas vocação turística e de laser. Precisamos restaurar o papel que a baía sempre desempenhou de integração de Salvador com o seu território. O momento é particularmente propício. O porto está em grande parte ocioso, com o cais dos quatro primeiros armazéns inviabilizado, devido ao assoreamento e seu prolongamento sem condições de operar “containers” e granéis.

O Comércio é a porta obrigatória de acesso a esta baía ensolarada e navegável.
todo o ano, de imensa importância econômica e turística. A solução natural do metrô
da Grande Salvador, correndo no leito da antiga ferrovia, como já adotaram Recife e Porto Alegre, passa necessariamente pelo Comércio, assim como a do transporte hidroviário para as ilhas e outros pontos do Recôncavo: CIA, Refinaria Landulpho Alves, Termadre. O Comércio é o ponto natural de articulação destes dois sistemas, o hidroviário e o rodoviário, com os terminais urbanos da Lapa e Barroquinha, ligados mediante uma pequena galeria.

Sem construir novos quebra-mares ou cais, podemos instalar na área marinas e parques náuticos, viabilizando, inclusive a visitação do notável Forte de São Marcelo através de passarela flutuante. Ali também tem guarita terminais hidroviários e de carga e uma central de abastecimento servida por saveiros. Em seus armazéns podemos instalar “shopping centers” e equipamentos comunitários, a um custo baixíssimo. Por que vamos complicar as coisas? O que não nos falta é porto. Possuímos cerca de dois milhões de metros quadrados de águas abrigadas, em sua maior parte ociosas.

Um projeto para o Comércio, que contemple estas questões, poderá recuperar toda a área central de Salvador, combatendo seu principal problema, o esvaziamento funcional. Há 25 anos só se faz tirar atividades do centro e não se investe um só centavo. Este é um empreendimento não só economicamente viável, como atrativo. Quando se anuncia a privatização das instalações do Porto de Salvador, não podemos perder talvez a última chance de recuperar o núcleo matriz de uma cidade tão marcadamente brasileira e sabiamente implantada a cavaleiro desta baía abençoada por todos os santos e orixás. Pensemos largo.


SSA: A Tarde, 19/10/1991


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