Artigos de Jornal
O baile dos gambás
Para não cansar os leitores, vou escrever hoje sobre literatura. As fabulas
são estórias populares de grande sabedoria recolhidas por alguns escritores.
Geralmente elas envolvem animais metafóricos, trazem mensagem morais e têm senso
de humor. O grego Esopo foi o primeiro a se preocupar em recolher estas estórias
orais no século IV aC. Autores de diferentes épocas recolheram contos populares
ou recriaram os de Esopo em outros cenários. Podemos citar entre os seus
seguidores o romano Fedro, no inicio da era cristã, e La Fontaine, no século
XVII, que recolheu 124 fabulas para oferecer ao filho de Luiz XIV. No Brasil
podemos citar Monteiro Lobato e Guimarães Rosa, não menos importantes que gregos
e romanos.
Minhas fabulas preferidas de Esopo são “A formiga e a cigarra” e “A raposa e as
uvas“, aquela em que o astuto animal depois de saltar várias vezes e não
conseguir alcançar belas uvas douradas murmura com desdém: estão verdes! O
repertorio da fabulas foi praticamente esgotado por aqueles autores, mas
recentemente li uma interessante que não conhecia.
Na periferia de uma grande cidade morava em uma chácara um casal de aposentados.
Um dia se instalou na garagem da casa um gambá, que comia a ração do cão,
atacava as galinhas e fedia. A dona de casa estava muito incomodada com o
invasor, mas logo a noticia se difundiu na vizinhança e todos queriam conhecer o
marsupial. A vida do casal mudou com as contínuas visitas de grupos escolares e
de representantes do Grupo Gambá, e de suas dissidências: Gambá do B e Gambás
Anônimos. Até a bancada de vereadores da reparação dos animais foi visitar o
gambá. Os preservacionistas advertiram o casal dos rigores da lei que penalizava
aqueles que maltratem ou matem animais em extinção, mais severa que o Estatuto
da Criança e do Adolescente, já que estes não estão em extinção.
A vida do casal virou um inferno e eles não sabiam o que fazer. Desesperado o
marido procurou um dos fundadores do Grupo Gambá, meu amigo Renato Cunha, que
tranquilizou o pobre homem dizendo: V. pode se livrar dele sem o matar. Basta
colocar um rastilho de ração de cachorro no caminho por aonde ele veio até
chegar uma mata, onde ele se reintegrará a seu ambiente natural. No dia
seguinte, o homem se muniu de uma grande mochila com ração de cachorro e saiu
dando voltas pelos canteiros da redondeza até chegar a um curso d’água além do
qual havia uma matinha.
Quebrou uns galhos, improvisou uma ponte e esvaziou a mochila na matinha. Voltou
eufórico por um atalho para anunciar a solução genial que havia adotado por
conselho do amigo. A esposa o ouviu paciente com um sorriso de ironia nos lábios
e no final lhe disse: os gambás lhe deram um baile, vá à garagem e veja que
agora são quatro e não há mais galinhas.
Moral da estória: a via que leva é a mesma que trás, mas quadriplicada. Quanto
mais viadutos inúteis se fizerem numa cidade, maiores serão os engarrafamentos.
Enquanto o Rio de Janeiro demole o minhocão das docas, sob o qual havia uma
craquelandia, para criar o Porto Maravilha e reestabelecer a visão da baia da
Guanabara, Salvador se gaba de criar uma Via Expressa com dez faixas, 14
viadutos (sem nenhum passeio) e três tuneis para ligar um porto seco a um porto
molhado e os Dois Leões à Pernambués. No futuro, dizem, esta via deverá dar
acesso à Linha Viva, onde não entrarão coletivos, só carros. Alguém, além das
empreiteiras, notou qualquer melhoria do trafego na cidade com essas obras de R$
420,00 milhões? Os engarrafamentos continuam na rótula do Abacaxi e piorou no
Barbalho e Soledade.
Esta fabula encenada por este escriba em Salvador não é dele, quem conta é Jan
Gehl, o dinamarquês que mais entende de trafego urbano no mundo. Para outro
expoente da gestão urbana e mobilidade, Enrique Peñalosa, que nos visitou
recentemente, mas não encontrou seguidores, cidade desenvolvida não é aquela que
a classe C se arrasta em carangos, senão aquela que a classe A e as demais fluem
em transporte coletivo de qualidade. O rodoviarismo, que grassa no país desde
meados do século passado, é enfermidade que cega, altamente contagiosa e
endêmica na Bahia. Haja concreto!
SSA: A Tarde de 24/11/13