Artigos de Jornal
Começar de novo. Vai valer a pena...?
No ultimo dia 28 a cidade enfrentou mais um dilúvio costumeiro. Os carros
subiam nos canteiros e tentavam escapar pela contramão enquanto a água subia.
Outros não conseguiram escapar e flutuaram ou submergiram. Anualmente a cidade
para um ou dois dias. Famílias da periferia perdem suas casas, seus moveis e
eletrodomésticos, quando não filhos, companheiros ou pais. A água contaminada
pelas valas de esgoto invade as casas e equipamentos sociais provocando doenças.
A sub-pressão da água abre crateras nas ruas. Algumas famílias perdem tudo e
enfrentam o desafio de começar tudo de novo, no mesmo local, sem garantia que
não vão viver o mesmo drama no ano seguinte.
Algum economista já calculou o custo econômico e social do despreparo de nossa
cidade para as chuvas? Não creio que o clima tenha mudado radicalmente no ultimo
meio século. Quando era menino me recordo de tempestades tropicais mais intensas
que as ultimas. Faltava luz, o céu se iluminava com raios e ouvíamos o estrondo
ensurdecedor dos trovões. Cobríamos os espelhos para seu “aço” não atrair os
raios, queimávamos as palmas guardadas da procissão de ramos e cantávamos:
“Santa Clara clareai, São Domingos iluminai, vai chuva vem sol!” Uma dessas
tempestades arrancou pelas raízes dois frondosos tamarindeiros centenários na
Av. Beira Mar, em Itapagipe.
As tempestades marcavam a mudança das estações e provocavam um misto de medo e
brincadeiras. Armávamos barracas com lençóis sobre as camas e esperávamos o dia
clarear para ver o chão em volta da casa recoberto de mangas verdes e galhos e
saber onde caíram os raios da noite anterior. Mas não me lembro de vales e ruas,
inclusive litorâneas, alagadas, nem viadutos transformados em piscinas. O que
aconteceu?
Entre outras causas estão o desmatamento de encostas, o recobrimento dos rios, o
asfaltamento dos vales, a construção de edifícios com garagens que ocupam e
impermeabilizam todo o terreno, a precariedade do recolhimento de lixo e a falta
de manutenção das redes de águas pluviais. Cadê os garis que variam as ruas e
tiravam areia das bocas de lobo com escumadeiras?
E tudo isto em uma cidade tão fácil de drenar. Sim, porque temos mar em três
lados e desníveis de até 65m. Difícil é drenar uma cidade plana e central como
São Paulo cortada por rios, onde as águas pluviais precisam ser bombeadas
enquanto cai o toró e o rio mais adiante reflui. Mesmo assim cidades como Paris,
Recife ou Cachoeira, dominaram os alagamentos com represas e dragagem de seus
rios. Não precisamos nada disso em Salvador, basta descobrir e aumentar a secção
dos nossos rios urbanos, preservar as áreas verdes, restabelecer a coleta de
lixo desde os nascedouro dos rios nos municípios vizinhos, recuperar e manter a
rede de águas pluviais.
Salvador é como as famílias que perdem tudo, todos os anos. Tem que ser
reconstruída no mesmo lugar, com a certeza que vai ser submersa no próximo ano.
São centenas de toneladas de sonrisal-asfaltico para tapar buracos, remoção de
avalanches de terra, construção de contenções, limpeza de galerias cheias de
lama, reparação de redes aéreas, recuperação de escolas etc. Até quando? Tudo
isto poderia ser evitado com obras de drenagem como prescreviam os antigos
engenheiros sanitaristas e primeiros urbanistas brasileiros: Teodoro Sampaio,
Saturnino de Brito, Peltier de Queiroz e Mario Leal Ferreira. Salvador tem que
ser reconstruída das fundações, depois da sua destruição sistemáticas no ultimo
meio século. Isto consagraria uma administração municipal, ainda que não fizesse
mais nada.
Valerá a pena voltar a amanhecer, fazer obras debaixo da terra que ninguém vê,
ao invés de faraônicas pontes e inúteis viadutos? Começar de novo vai valer a
pena...? pergunta Ivan Lins diante do naufrágio dos sonhos e projetos de uma
vida em comum. Responde Fernando Pessoa, que nunca o conheceu: “tudo vale a pena
se a alma não é pequena”.
SSA: A Tarde, 8/12/13