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Começar de novo. Vai valer a pena...?

  • 08 de Dezembro de 2013

No ultimo dia 28 a cidade enfrentou mais um dilúvio costumeiro. Os carros subiam nos canteiros e tentavam escapar pela contramão enquanto a água subia. Outros não conseguiram escapar e flutuaram ou submergiram. Anualmente a cidade para um ou dois dias. Famílias da periferia perdem suas casas, seus moveis e eletrodomésticos, quando não filhos, companheiros ou pais. A água contaminada pelas valas de esgoto invade as casas e equipamentos sociais provocando doenças. A sub-pressão da água abre crateras nas ruas. Algumas famílias perdem tudo e enfrentam o desafio de começar tudo de novo, no mesmo local, sem garantia que não vão viver o mesmo drama no ano seguinte.

Algum economista já calculou o custo econômico e social do despreparo de nossa cidade para as chuvas? Não creio que o clima tenha mudado radicalmente no ultimo meio século. Quando era menino me recordo de tempestades tropicais mais intensas que as ultimas. Faltava luz, o céu se iluminava com raios e ouvíamos o estrondo ensurdecedor dos trovões. Cobríamos os espelhos para seu “aço” não atrair os raios, queimávamos as palmas guardadas da procissão de ramos e cantávamos: “Santa Clara clareai, São Domingos iluminai, vai chuva vem sol!” Uma dessas tempestades arrancou pelas raízes dois frondosos tamarindeiros centenários na Av. Beira Mar, em Itapagipe.

As tempestades marcavam a mudança das estações e provocavam um misto de medo e brincadeiras. Armávamos barracas com lençóis sobre as camas e esperávamos o dia clarear para ver o chão em volta da casa recoberto de mangas verdes e galhos e saber onde caíram os raios da noite anterior. Mas não me lembro de vales e ruas, inclusive litorâneas, alagadas, nem viadutos transformados em piscinas. O que aconteceu?

Entre outras causas estão o desmatamento de encostas, o recobrimento dos rios, o asfaltamento dos vales, a construção de edifícios com garagens que ocupam e impermeabilizam todo o terreno, a precariedade do recolhimento de lixo e a falta de manutenção das redes de águas pluviais. Cadê os garis que variam as ruas e tiravam areia das bocas de lobo com escumadeiras?

E tudo isto em uma cidade tão fácil de drenar. Sim, porque temos mar em três lados e desníveis de até 65m. Difícil é drenar uma cidade plana e central como São Paulo cortada por rios, onde as águas pluviais precisam ser bombeadas enquanto cai o toró e o rio mais adiante reflui. Mesmo assim cidades como Paris, Recife ou Cachoeira, dominaram os alagamentos com represas e dragagem de seus rios. Não precisamos nada disso em Salvador, basta descobrir e aumentar a secção dos nossos rios urbanos, preservar as áreas verdes, restabelecer a coleta de lixo desde os nascedouro dos rios nos municípios vizinhos, recuperar e manter a rede de águas pluviais.

Salvador é como as famílias que perdem tudo, todos os anos. Tem que ser reconstruída no mesmo lugar, com a certeza que vai ser submersa no próximo ano. São centenas de toneladas de sonrisal-asfaltico para tapar buracos, remoção de avalanches de terra, construção de contenções, limpeza de galerias cheias de lama, reparação de redes aéreas, recuperação de escolas etc. Até quando? Tudo isto poderia ser evitado com obras de drenagem como prescreviam os antigos engenheiros sanitaristas e primeiros urbanistas brasileiros: Teodoro Sampaio, Saturnino de Brito, Peltier de Queiroz e Mario Leal Ferreira. Salvador tem que ser reconstruída das fundações, depois da sua destruição sistemáticas no ultimo meio século. Isto consagraria uma administração municipal, ainda que não fizesse mais nada.

Valerá a pena voltar a amanhecer, fazer obras debaixo da terra que ninguém vê, ao invés de faraônicas pontes e inúteis viadutos? Começar de novo vai valer a pena...? pergunta Ivan Lins diante do naufrágio dos sonhos e projetos de uma vida em comum. Responde Fernando Pessoa, que nunca o conheceu: “tudo vale a pena se a alma não é pequena”.


SSA: A Tarde, 8/12/13


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