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Tecnologia e soberania nacional
No atual estágio do desenvolvimento capitalista, a apropriação de tecnologias
de ponta é o fator primordial para a consolidação da hegemonia mundial. Os
países desenvolvidos, como é fácil deduzir, não repassam tais avanços aos mais
pobres, como procuram impedir que os mesmos cheguem, por meios próprios, a tais
tecnologias, mediante pressões e eventuais intervenções militares sob o pretexto
de zelarem pela segurança global. Ora, como todo conhecimento científico pode,
em tese, ter aplicação militar, estamos impedidos de dominar as novas
tecnologias e condenados à dependência científica e técnica, o que vale dizer
econômica e política.
Assim, dificulta-se às nações do Terceiro Mundo o acesso aos novos campos da
ciência, como a energia nuclear, os avanços espaciais, a informática de ponta, a
química avançada e a engenharia genética, sob pretexto de evitar-se a
disseminação de armas de destruição de massa. Argumento cínico, já que os
grandes conflitos mundiais foram sempre provocados pelo Primeiro Mundo, que não
abre mão de seus imensos arsenais letais.
Com relação às tecnologias intermediárias, o cerco é igualmente fechado com
tratados de proteção da propriedade industrial e com sanções financeiras e
comerciais a quem tentar rompê-los. Nem a montagem de razoável parque industrial
multinacional no Brasil, resultante da política de substituição das importações,
serviu para superar esta dependência de todo interessante para as casas
matrizes. O empresariado nacional, por outro lado, prefere comprar tecnologia de
segunda mão a investir na pesquisa criativa. Desde um insosso sanduíche,
passando pelas grifes de roupas, pelo som, pela imagem, até as “carroças”
nacionais, tudo depende do “design”, do "copyright" e do “engineering”
importados.
Neste quadro, as indústrias estratégicas brasileiras cumpriram um papel
fundamental no rompimento deste cerco. Refiro-me às indústrias de base criadas
para sustentar o desenvolvimento nacional, a partir do governo de Vargas. No
Brasil, como no resto do mundo, a pesquisa avançada não se faz nas
universidades, com seus minguados recursos, senão nas grandes corporações
industriais e estratégicas. Quero exemplificar três casos de tecnologia de ponta
desenvolvida por estatais brasileiras que gozam de inquestionável prestígio
mundial e serviram a estimular a pesquisa e a produção em campos correlatos.
Nos anos 70, após a crise do petróleo, o Brasil foi pressionado a firmar
contratos de risco para a exploração de petróleo em território e águas
brasileiras. Tais contratos não conseguiram dar ao país um só barril de
petróleo, por uma razão muito simples. O que interessava às companhias
petroleiras era ter uma reserva técnica. Com a superação da crise, as “sete
irmãs” voltaram a investir nos ricos campos petrolíferos do Oriente Médio em vez
de pesquisarem óleo em um país com menores recursos petrolíferos.
Enquanto isso, a Petrobrás, inspirada por uma política de diminuição da
dependência energética, desenvolveu a tecnologia de exploração de petróleo em
águas profundas de nossa plataforma, reconhecida, em 1991, como a mais avançada
do mundo pela Offshore Technology Conference, o que nos permitiu dobrar, em
pouco tempo, a produção nacional.
Outro exemplo é a Embraer, uma empresa feita por técnicos brasileiros com
capital nacional, que em poucos anos dominou a tecnologia de um dos mais
sofisticados e cartelizados setores industriais e se impôs como líder mundial da
chamada aviação regional e de aparelhos de treinamento militar. Em torno da
Embraer formou-se uma rede de centros de pesquisa e indústrias de alto nível.
Por último, temos uma empresa de serviços, a Embratel. Até meados da década de
60, o setor de comunicações esteve em mãos de um só grupo multinacional que
durante anos não investiu um só centavo no país. Passava-se uma ou duas horas à
espera de uma ligação telefônica e as chamadas interurbanas eram praticamente
impossíveis. Com a Embratel, em menos de 10 anos, dominamos as comunicações via
satélite e criamos uma rede de teleco- municações que serve com eficiência não
só ao país como a grande parte da América do Sul e Caribe. Em seus laboratórios,
foi recriada a tecnologia das fibras ópticas e desenvolvidas modernas centrais
telefônicas, que são hoje exportadas.
Estas e outras empresas estatais se transformam na principal mola do
desenvolvimento tecnológico nacional, criando laboratórios e desenvolvendo
projetos em associação com outros centros de pesquisa e universidades. Não se
tem notícia de nada semelhante realizado pela intciativa privada nacional ou
transnacional no país.
A privatização, que agora se anuncia dessas empresas estratégicas e sua
inevitável desnacionalização significará o fechamento da única porta que nos
resta para atingirmos o Primeiro Mundo e um retrocesso que compromete a nossa
independência econômica. Não há nenhum argumento sério para sua alienação.
Nenhuma das citadas empresas é inviável ou deficitária, embora a Embraer
enfrente uma crise decorrente de não realização de investimentos para
cumprimento de compromissos já negociados. Deus sabe com que propósito. Ninguém
se lembra que o chamado complexo industrial-militar norte-americano e a NASA,
alavancas da ciência e tecnologia daquele país, são mantidos com imensos
investimentos a fundo perdido do governo federal americano. Este é o preço da
hegemonia. No nosso caso, é a própria soberania nacional que está em jogo.
SSA: A Tarde, 24/8/1993