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Thales de Azevedo, o pintor
Uma das maiores surpresas das comemorações do meio século de atividades
literárias de Thales de Azevedo, que o Governo do Estado, Prefeitura do
Salvador, UFBA, Academia de Letras da Bahia e outras instituições lhe prestam é
a mostra de seus desenhos, aquarelas e óleos, atualmente exposta na Academia de
Letras da Bahia. O grande público, aquele que não tem acesso a sua intimidade,
não poderia imaginar que, além de Medicina social, da História interpretativa,
da Antropologia dos ritos da vida, da Sociologia da religião, do Periodismo
militante, da novelística histórica. Thales de Azevedo, sempre afeito ao método
científico, tivesse fair-play e encontrasse tempo para se dedicar aos pincéis e
à palheta.
Mas o que surpreende, mesmo, nessa exposição de um pintor bissexto é a
quantidade e qualidade de sua pintura. São mais de 60 obras, entre sketchs,
marinhas, paisagens, naturezas-mortas e retratos. Quem imaginava encontrar um
pintor naif, ingênuo, desses cujos quadros são uma colagem divertida de
detalhes, se surpreende com um artista unitário, que domina várias técnicas, a
perspectiva, o chiaro-oscuro, a escala cromática e capta o “tchan” de seus
retratados.
TOGA, como se assina, iniciais de Thales Olympio Góes de Azevedo começou a
pintar antes mesmo de escrever os ensaios que o consagraram. O despertar para a
pintura e sua decodificação talvez tenham advindo do convívio com alguns
familiares. Sua mãe, a austera D. Lôla, e sua tia não menos rigorosa, Laura Góes
Batista, faziam cópias de gravuras e cartões-postais, sem nunca terem pisado em
uma Escola de Belas Artes, como muitas moças de sua geração.
Thales não é um pintor domingueiro, desses que pintam de pijama para matar o
tempo. É um pintor que em alguns períodos, nas poucas férias que tirou,
deixou-se dominar pela paixão e febre da pintura. Seu primeiro desenho
preservado, um retrato aparentemente de um padre, data de 1926, quando era ainda
estudante de Medicina.
Depois que regressou de Castro Alves, onde exerceu clínica médica durante três
anos, começou a pintar arrabaldes de Salvador, como Amaralina, Itapagipe e
Itaparica. O tema predileto dessa fase, que se estende de 1934 a 1941, eram as
marinhas, como não podia deixar de ser. Essa é sem dúvida a temática que ele
melhor dominou.
Férias na residência de tia Laura, próximo à estação de telégrafo dos Correios,
em Amaralina; na casa da família materna, em Itaparica; e finais de semana na
vivenda itapagipana da Profa. Honorina Minho, amiga da diligente D. Mariá,
resultariam em uma coleção de delicadas aquarelas que lembram aquarelistas e
gravadores ingleses da transição do século passado para o atual. São desse ciclo
dois óleos, provavelmente os primeiros, de profundos azuis e verdes do céu, mar
e restingasde Amaralina. Telas de um acabamento esmerado, como as aquarelas
aludidas.
No curso secundário, no Antonio Vieira, quando este ainda funcionava na Rua
Coqueiros da Piedade, fez alguns exercícios de desenho de observação com o Pe.
Geraldes, professor de História e Geografia, um fino aquarelista de plantas e
frutos tropicais ilustrações prováveis de um livro nunca concluído. Bastou isto
para se capaz de decolar.
Na estadia no Rio Grande do Sul, em 1941, para conhecer os tios e a terra de
Mariá, e que resultaria no ensaio Gaúchos, cujos 50 anos atualmente se comemora,
pintou de memória flashes rurais captados durante a viagem de trem em que
percorreu todo o estado. Esta preocupação descritiva, etnográfica, se acentuaria
com o início do magistério de Antropologia na recém-fundada Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras, de Isaías Alves. São dessa época, mais
precisamente de 1945, oito bicos-de-pena de cancelas e mata-burros, alguns com
anotações, documentados no distrito de igreja Nova, em Alagoinhas, onde passou
com a família um Verão na fazenda de seu tio Carlos Azevedo. Pode-se considerar
da mesma safra a vinheta com que ilustrou Gaúchos: uma chaleira com a cuia e
bomba de chimarrão.
Uma arte de D. Mariá lhe levaria de volta ao seu tema predileto, as marinhas. Em
1946, ela fez sua cabeça e compra uma pequena casa de veraneio na Rua Domingos
Rabelo, próximo ao Porto dos Tainheiros. Thales pinta, então, o artigo estaleiro
que ali existiu, tendo como fundo o Lobato. Resgatava assim o artista. Estes são
talvez os únicos registros em tela daquele cemitério de vapores e saveiros e
bairros de mareantes, que seria invadido e varrido pelos Alagados.
A enorme atividade acadêmica, de pesquisa e administrativa iniciada no Governo
Mangabeira, quando foi o braço-direito de Anísio Teixeira, lhe roubaria o tempo
e a tranquilidade para dedicar-se à pintura. Mas a aposentadoria compulsória da
Universidade Federal da Bahia, em 1967, que corresponde ao início de um período
de viagens ao exterior, para cumprir compromissos acadêmicos, e ao interior da
Bahia, por razões familiares, lhe devolveria o tempo e o gosto para uma outra
safra pictórica. Abraça então temas novos, especialmente a paisagem e o retrato.
Uma visita a Londres à casa da bolsista Profa. Maria Brandão, sua filha, abre a
nova temporada, com luminosos parques primaveris e townscapes ao crepúsculo.
Segue-se uma série de paisagens de uma das regiões mais belas e dramáticas da
Bahia, Milagres, com seus imensos penedos e talos rochosos. Paisagens pintadas
na Fazenda Gruta, de sua filha Isabel e genro, Lavaniere. Pinta também o sítio
de Silvia e Antonio em São Gonçalo. Esse ciclo é encerrado com interiores e
naturezas-mortas pintadas no inverno de New York, em 1971, quando ali deu aulas
na Columbia University.
São da mesma época alguns retratos, como o sketch de Mário Cravo, realizado
durante uma seção do Conselho Estadual de Cultura, dois autorretratos a
acrílico, e o portrait de Antonio Bispo, velho empregado doméstico, pau-d’água
inveterável, mas figura humana notável.
Thales de Azevedo é um pintor figurativo que não se filiou a nenhum modismo.
Recria marinhas e paisagens a seu modo, nos transmitindo uma tranquilidade
momentânea, que logo se transforma em nostalgia de um tempo sem retorno. E como
corrói.
Quando se festeja 50 anos de seu primeiro livro, Thales de Azevedo, que sempre
surpreendeu seus leitores com temas nunca dantes navegados ou enfoques novos de
tópicos aparentemente esgotados, embora sensibilizados, não se satisfaz com o
papel incômodo de objeto passivo dessas homenagens, ele que é só sujeito de
pensamentos e ações. Dá a volta por cima e brinda seu público com uma mostra que
ninguém, salvo a família, desconfiava.
Esta é a primeira vez que o pintor, tão zeloso de seu mundo interior, exibe em
público suas telas, rompendo um privilégio familiar. Mostra assim sua vertente
poética e estética, quebrando a imagem fria do cientista social penetrante, mas
supostamente isento e distante. Exibe o que tem de mais íntimo, seu olhar
sensível sobre paisagem e o mundo que ama.
Nesta mostra, que merecia um catálogo à altura, Thales, na juventude e sabedoria
de seus quase 90 anos, se desnuda em público e se deixa revelar na luz, na
linha, no movimento e na cor. Quem sabe se esta exposição não será o começo de
um novo cio pictórico, como o de 1934 e 1967?
SSA: A Tarde, 02/12/1993.