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Thales de Azevedo, o pintor

  • 02 de Dezembro de 1993

Uma das maiores surpresas das comemorações do meio século de atividades literárias de Thales de Azevedo, que o Governo do Estado, Prefeitura do Salvador, UFBA, Academia de Letras da Bahia e outras instituições lhe prestam é a mostra de seus desenhos, aquarelas e óleos, atualmente exposta na Academia de Letras da Bahia. O grande público, aquele que não tem acesso a sua intimidade, não poderia imaginar que, além de Medicina social, da História interpretativa, da Antropologia dos ritos da vida, da Sociologia da religião, do Periodismo militante, da novelística histórica. Thales de Azevedo, sempre afeito ao método científico, tivesse fair-play e encontrasse tempo para se dedicar aos pincéis e à palheta.
Mas o que surpreende, mesmo, nessa exposição de um pintor bissexto é a quantidade e qualidade de sua pintura. São mais de 60 obras, entre sketchs, marinhas, paisagens, naturezas-mortas e retratos. Quem imaginava encontrar um pintor naif, ingênuo, desses cujos quadros são uma colagem divertida de detalhes, se surpreende com um artista unitário, que domina várias técnicas, a perspectiva, o chiaro-oscuro, a escala cromática e capta o “tchan” de seus retratados.
TOGA, como se assina, iniciais de Thales Olympio Góes de Azevedo começou a pintar antes mesmo de escrever os ensaios que o consagraram. O despertar para a pintura e sua decodificação talvez tenham advindo do convívio com alguns familiares. Sua mãe, a austera D. Lôla, e sua tia não menos rigorosa, Laura Góes Batista, faziam cópias de gravuras e cartões-postais, sem nunca terem pisado em uma Escola de Belas Artes, como muitas moças de sua geração.
Thales não é um pintor domingueiro, desses que pintam de pijama para matar o tempo. É um pintor que em alguns períodos, nas poucas férias que tirou, deixou-se dominar pela paixão e febre da pintura. Seu primeiro desenho preservado, um retrato aparentemente de um padre, data de 1926, quando era ainda estudante de Medicina.
Depois que regressou de Castro Alves, onde exerceu clínica médica durante três anos, começou a pintar arrabaldes de Salvador, como Amaralina, Itapagipe e Itaparica. O tema predileto dessa fase, que se estende de 1934 a 1941, eram as marinhas, como não podia deixar de ser. Essa é sem dúvida a temática que ele melhor dominou.
Férias na residência de tia Laura, próximo à estação de telégrafo dos Correios, em Amaralina; na casa da família materna, em Itaparica; e finais de semana na vivenda itapagipana da Profa. Honorina Minho, amiga da diligente D. Mariá, resultariam em uma coleção de delicadas aquarelas que lembram aquarelistas e gravadores ingleses da transição do século passado para o atual. São desse ciclo dois óleos, provavelmente os primeiros, de profundos azuis e verdes do céu, mar e restingasde Amaralina. Telas de um acabamento esmerado, como as aquarelas aludidas.
No curso secundário, no Antonio Vieira, quando este ainda funcionava na Rua Coqueiros da Piedade, fez alguns exercícios de desenho de observação com o Pe. Geraldes, professor de História e Geografia, um fino aquarelista de plantas e frutos tropicais ilustrações prováveis de um livro nunca concluído. Bastou isto para se capaz de decolar.
Na estadia no Rio Grande do Sul, em 1941, para conhecer os tios e a terra de Mariá, e que resultaria no ensaio Gaúchos, cujos 50 anos atualmente se comemora, pintou de memória flashes rurais captados durante a viagem de trem em que percorreu todo o estado. Esta preocupação descritiva, etnográfica, se acentuaria com o início do magistério de Antropologia na recém-fundada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Isaías Alves. São dessa época, mais precisamente de 1945, oito bicos-de-pena de cancelas e mata-burros, alguns com anotações, documentados no distrito de igreja Nova, em Alagoinhas, onde passou com a família um Verão na fazenda de seu tio Carlos Azevedo. Pode-se considerar da mesma safra a vinheta com que ilustrou Gaúchos: uma chaleira com a cuia e bomba de chimarrão.
Uma arte de D. Mariá lhe levaria de volta ao seu tema predileto, as marinhas. Em 1946, ela fez sua cabeça e compra uma pequena casa de veraneio na Rua Domingos Rabelo, próximo ao Porto dos Tainheiros. Thales pinta, então, o artigo estaleiro que ali existiu, tendo como fundo o Lobato. Resgatava assim o artista. Estes são talvez os únicos registros em tela daquele cemitério de vapores e saveiros e bairros de mareantes, que seria invadido e varrido pelos Alagados.
A enorme atividade acadêmica, de pesquisa e administrativa iniciada no Governo Mangabeira, quando foi o braço-direito de Anísio Teixeira, lhe roubaria o tempo e a tranquilidade para dedicar-se à pintura. Mas a aposentadoria compulsória da Universidade Federal da Bahia, em 1967, que corresponde ao início de um período de viagens ao exterior, para cumprir compromissos acadêmicos, e ao interior da Bahia, por razões familiares, lhe devolveria o tempo e o gosto para uma outra safra pictórica. Abraça então temas novos, especialmente a paisagem e o retrato.
Uma visita a Londres à casa da bolsista Profa. Maria Brandão, sua filha, abre a nova temporada, com luminosos parques primaveris e townscapes ao crepúsculo. Segue-se uma série de paisagens de uma das regiões mais belas e dramáticas da Bahia, Milagres, com seus imensos penedos e talos rochosos. Paisagens pintadas na Fazenda Gruta, de sua filha Isabel e genro, Lavaniere. Pinta também o sítio de Silvia e Antonio em São Gonçalo. Esse ciclo é encerrado com interiores e naturezas-mortas pintadas no inverno de New York, em 1971, quando ali deu aulas na Columbia University.
São da mesma época alguns retratos, como o sketch de Mário Cravo, realizado durante uma seção do Conselho Estadual de Cultura, dois autorretratos a acrílico, e o portrait de Antonio Bispo, velho empregado doméstico, pau-d’água inveterável, mas figura humana notável.
Thales de Azevedo é um pintor figurativo que não se filiou a nenhum modismo. Recria marinhas e paisagens a seu modo, nos transmitindo uma tranquilidade momentânea, que logo se transforma em nostalgia de um tempo sem retorno. E como corrói.
Quando se festeja 50 anos de seu primeiro livro, Thales de Azevedo, que sempre surpreendeu seus leitores com temas nunca dantes navegados ou enfoques novos de tópicos aparentemente esgotados, embora sensibilizados, não se satisfaz com o papel incômodo de objeto passivo dessas homenagens, ele que é só sujeito de pensamentos e ações. Dá a volta por cima e brinda seu público com uma mostra que ninguém, salvo a família, desconfiava.
Esta é a primeira vez que o pintor, tão zeloso de seu mundo interior, exibe em público suas telas, rompendo um privilégio familiar. Mostra assim sua vertente poética e estética, quebrando a imagem fria do cientista social penetrante, mas supostamente isento e distante. Exibe o que tem de mais íntimo, seu olhar sensível sobre paisagem e o mundo que ama.
Nesta mostra, que merecia um catálogo à altura, Thales, na juventude e sabedoria de seus quase 90 anos, se desnuda em público e se deixa revelar na luz, na linha, no movimento e na cor. Quem sabe se esta exposição não será o começo de um novo cio pictórico, como o de 1934 e 1967?

SSA: A Tarde, 02/12/1993.


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