Artigos de Jornal
Plenitude democrática
Basta abrir os jornais e semanários e nos deparamos com manchetes alardeando
uma terrível crise moral, política e institucional que se abate sobre o País,
como as dez pragas do Egito. Primeiro foi a nuvem de marajás e usineiros
acabando com a plantação, depois a revoada de fantasmas e morcegões saídos da
caixinha do caçador-de-marajás que acabou se transformando em seu caixão
político. A maldição dos faraós cairia, a seguir, sobre honoráveis lideranças
parlamentares e um autêntico pianista, nas CPIs do Orçamento e do esquecido Pau
Brasil.
Quem não acreditava em estórias para crianças acabou reconhecendo os poderes
mágicos dos sete anãos que brindaram com 240 sortilégios da CEF a casta Branca
de Neve, enquanto o “lobby” mau comia a vovozinha sem deixar rastro. O
empresariado, arauto da eficiência e da probidade, recolheria a viola no saco em
face da divulgação do relatório da máfia das construtoras. Como sempre se
cumpriu a “lei do silêncio”, mas pela primeira vez abundaram as provas.
Nada disto é novidade nesta “metade sem pecado do lado de baixo do Equador”, que
já nasceu com o escrivão Carminha querendo “tirar vantagem” da boa nova para seu
genro pilantra. Se Ruy fosse vivo, conhecedor das maracutaias do velho Império e
da nova República, por certo não se escandalizaria com nada disto, nem
precisaria rever sua Oração aos Moços. Mas talvez se surpreendesse com a força
do Congresso aplicando o impeachment ao presidente sem decoro, a Câmara de
Deputados caçando seus pares pela venda de passes partidários e o Supremo
Tribunal Federal agindo com um preciosismo jurídico talvez exagerado diante da
grosseria dos crimes, mas alheio a qualquer pressão política e popular.
Não existe nenhuma crise política ou moral, pelo contrário, estamos vivendo um
dos períodos mais lúcidos, límpidos e tranquilos da história nacional, que só
não é perfeito devido às clamorosas desigualdades sociais. Tenta-se forjar uma
crise, instigando os militares, para que interrompam as CPIs e se volte a
hipocrisia do jogo por debaixo do pano, sem perceberem que os tempos são outros.
Acusa-se Itamar de ser fraco, por não fazer a bravata hipócrita de Collor ou a
retórica vazia de Sarney. Trabalhando em silêncio, o mineiro é somente Franco e
tem se mostrado um líder hábil à altura da conjuntura. Ninguém mais fala de
crise de governabilidade e os três poderes funcionam com uma autonomia nunca
vista.
O que está ocorrendo no Brasil é um processo político da mais alta importância,
o mesmo por que passaram alguns dos mais avançados países do mundo, como o Japão
e a Itália. Com o fim da guerra fria, caiu por terra a ideologia da segurança
nacional, que encobria e justificava a corrupção no poder. Máfia siciliana,
Camorra, Complexo industrial militar e os cartéis de Medelín e Call sempre
estiveram por trás do Estado e eram encobertos porque era necessário ganhar as
eleições para sustar o perigo maior do comunismo. No bloco soviético algo
semelhante acontecia com a nomenclatura. Tudo isto caiu. Partidos como o PDC na
Itália e o PSD no Japão, que estavam no poder há quase meio século, foram
aniquilados.
Toda a purgação que o Congresso Nacional está passando resultará no
aperfeiçoamento de nossas instituições, com a regulamentação do financiamento
das campanhas eleitorais, o estabelecimento de mecanismo de controles dos três
poderes pela sociedade e processos de licitação abertos e transparentes, como
aconteceu naqueles países.
Mas os sete grandes, que antes falaram nas virtudes da democracia, deixaram cair
a máscara e hoje defendem abertamente o chamado cenário Pinochet: a
transformação das subeconomias terceiro-mundistas em economias capitalistas
satélites, mantidas por regimes autoritários, supostamente eficientes, e aliados
de seus interesses. Estão aí os exemplos das ditaduras do Peru, Argélia e Rússia
com o apoio ostensivo dos países ricos. O Ocidente ainda se arrependerá do
suporte financeiro e político que vem dando a Yeltsin, menosprezando suas
ambições imperiais e poderio atômico.
À diferença desses países, aqui ninguém pensa anular eleições, bombardear o
Congresso e fechar os tribunais por não fazerem a vontade de presidente, nem
outorgar uma constituição autoritária para legitimar a ditadura. Já passamos por
tudo isso e sabemos que isso não leva a nada, senão ao atraso e ao sofrimento.
Aqui não se tentou matar P.C. Farias ou José Carlos Alves da Silva para não
contarem o que sabiam, como ocorreu com o solitário Pablo Escobar, um arquivo
morto com a cabeça a prêmio. Não somos tampouco uma democracia tutelada, como a
do Chile, onde ainda hoje presos políticos são torturados. Podemos não ser ricos
como Taiwan, Coréia do Sul e outros tigres asiáticos, baluartes capitalistas
criados pela guerra fria, mas estamos politicamente anos-luz à sua frente.
Chegamos, em menos de dez anos, à plenitude democrática, com sindicatos que já
não são mais vistos como um caso de polícia, mas como forças do sistema de
produção, com uma imprensa livre e compatível, comparável à dos países do
Primeiro Mundo. Como na Itália e no Japão o que ocorrerá no Brasil, além das
condenações, será a renovação quase completa dos quadros políticos com a
extirpação de velhos vícios.
É este processo que devemos aprofundar, para que possamos rapidamente resolver a
questão básica do nosso desenvolvimento, que é a incorporação à cidadania e ao
mercado de mais da metade da nossa sociedade. As dez pragas, corroendo o velho
estado e sua clientela mafiosa, se não nos levarem ao Milênio da Promissão, sem
dúvida libertarão o nosso povo do cativeiro da ignorância, da miséria e da fome.
SSA: A Tarde, 30/12/1993