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Plenitude democrática

  • 30 de Dezembro de 1993

Basta abrir os jornais e semanários e nos deparamos com manchetes alardeando uma terrível crise moral, política e institucional que se abate sobre o País, como as dez pragas do Egito. Primeiro foi a nuvem de marajás e usineiros acabando com a plantação, depois a revoada de fantasmas e morcegões saídos da caixinha do caçador-de-marajás que acabou se transformando em seu caixão político. A maldição dos faraós cairia, a seguir, sobre honoráveis lideranças parlamentares e um autêntico pianista, nas CPIs do Orçamento e do esquecido Pau Brasil.
Quem não acreditava em estórias para crianças acabou reconhecendo os poderes mágicos dos sete anãos que brindaram com 240 sortilégios da CEF a casta Branca de Neve, enquanto o “lobby” mau comia a vovozinha sem deixar rastro. O empresariado, arauto da eficiência e da probidade, recolheria a viola no saco em face da divulgação do relatório da máfia das construtoras. Como sempre se cumpriu a “lei do silêncio”, mas pela primeira vez abundaram as provas.
Nada disto é novidade nesta “metade sem pecado do lado de baixo do Equador”, que já nasceu com o escrivão Carminha querendo “tirar vantagem” da boa nova para seu genro pilantra. Se Ruy fosse vivo, conhecedor das maracutaias do velho Império e da nova República, por certo não se escandalizaria com nada disto, nem precisaria rever sua Oração aos Moços. Mas talvez se surpreendesse com a força do Congresso aplicando o impeachment ao presidente sem decoro, a Câmara de Deputados caçando seus pares pela venda de passes partidários e o Supremo Tribunal Federal agindo com um preciosismo jurídico talvez exagerado diante da grosseria dos crimes, mas alheio a qualquer pressão política e popular.
Não existe nenhuma crise política ou moral, pelo contrário, estamos vivendo um dos períodos mais lúcidos, límpidos e tranquilos da história nacional, que só não é perfeito devido às clamorosas desigualdades sociais. Tenta-se forjar uma crise, instigando os militares, para que interrompam as CPIs e se volte a hipocrisia do jogo por debaixo do pano, sem perceberem que os tempos são outros.
Acusa-se Itamar de ser fraco, por não fazer a bravata hipócrita de Collor ou a retórica vazia de Sarney. Trabalhando em silêncio, o mineiro é somente Franco e tem se mostrado um líder hábil à altura da conjuntura. Ninguém mais fala de crise de governabilidade e os três poderes funcionam com uma autonomia nunca vista.
O que está ocorrendo no Brasil é um processo político da mais alta importância, o mesmo por que passaram alguns dos mais avançados países do mundo, como o Japão e a Itália. Com o fim da guerra fria, caiu por terra a ideologia da segurança nacional, que encobria e justificava a corrupção no poder. Máfia siciliana, Camorra, Complexo industrial militar e os cartéis de Medelín e Call sempre estiveram por trás do Estado e eram encobertos porque era necessário ganhar as eleições para sustar o perigo maior do comunismo. No bloco soviético algo semelhante acontecia com a nomenclatura. Tudo isto caiu. Partidos como o PDC na Itália e o PSD no Japão, que estavam no poder há quase meio século, foram aniquilados.
Toda a purgação que o Congresso Nacional está passando resultará no aperfeiçoamento de nossas instituições, com a regulamentação do financiamento das campanhas eleitorais, o estabelecimento de mecanismo de controles dos três poderes pela sociedade e processos de licitação abertos e transparentes, como aconteceu naqueles países.
Mas os sete grandes, que antes falaram nas virtudes da democracia, deixaram cair a máscara e hoje defendem abertamente o chamado cenário Pinochet: a transformação das subeconomias terceiro-mundistas em economias capitalistas satélites, mantidas por regimes autoritários, supostamente eficientes, e aliados de seus interesses. Estão aí os exemplos das ditaduras do Peru, Argélia e Rússia com o apoio ostensivo dos países ricos. O Ocidente ainda se arrependerá do suporte financeiro e político que vem dando a Yeltsin, menosprezando suas ambições imperiais e poderio atômico.
À diferença desses países, aqui ninguém pensa anular eleições, bombardear o Congresso e fechar os tribunais por não fazerem a vontade de presidente, nem outorgar uma constituição autoritária para legitimar a ditadura. Já passamos por tudo isso e sabemos que isso não leva a nada, senão ao atraso e ao sofrimento.
Aqui não se tentou matar P.C. Farias ou José Carlos Alves da Silva para não contarem o que sabiam, como ocorreu com o solitário Pablo Escobar, um arquivo morto com a cabeça a prêmio. Não somos tampouco uma democracia tutelada, como a do Chile, onde ainda hoje presos políticos são torturados. Podemos não ser ricos como Taiwan, Coréia do Sul e outros tigres asiáticos, baluartes capitalistas criados pela guerra fria, mas estamos politicamente anos-luz à sua frente.
Chegamos, em menos de dez anos, à plenitude democrática, com sindicatos que já não são mais vistos como um caso de polícia, mas como forças do sistema de produção, com uma imprensa livre e compatível, comparável à dos países do Primeiro Mundo. Como na Itália e no Japão o que ocorrerá no Brasil, além das condenações, será a renovação quase completa dos quadros políticos com a extirpação de velhos vícios.
É este processo que devemos aprofundar, para que possamos rapidamente resolver a questão básica do nosso desenvolvimento, que é a incorporação à cidadania e ao mercado de mais da metade da nossa sociedade. As dez pragas, corroendo o velho estado e sua clientela mafiosa, se não nos levarem ao Milênio da Promissão, sem dúvida libertarão o nosso povo do cativeiro da ignorância, da miséria e da fome.


SSA: A Tarde, 30/12/1993


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