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Retorno ao Éden

  • 13 de Fevereiro de 1994

O paraíso me pareceu constituído de lençóis brancos ondulados que eram banhados por transparentes aguas marinhas, sob uma cúpula de cobalto. Impressionou-se a ausência do tempo, a linha infinita do horizonte, o hálito da maresia, os insetos e plantas exóticas, a solidão do lugar. Tudo intocado como no quinto dia da criação. Cheguei voando, porque para o paraíso não havia estradas. Estive ali não por morte ou prêmio de virtudes que não possuo, senão por encargo de ofício. Para os mortais era o ano de 1961.
Já se pressentia a ameaça de uma invasão que podia destruir aquele paraíso. No fundo, minha presença ali estava ligada, como um Quixote tupiniquim, a tentar prevenir o impacto da invasão. Tentei dissimular a tragédia anunciada acordando bem cedo, na madrugada, para evitar que aquele sonho se transformasse em pesadelo. De balde, voltava a sonhar acordado. Passado o desapontamento inicial, raciocinei: os invasores virão do poente e não temos como resistir quando abrirem os acessos ao paraíso. Mas poderemos salvar uma parte do Éden, aquela que se desenvolve na borda da falésia, desde que reforcemos as atalaias criadas pelos fundadores, para se defenderem de outras ameaças, essas vindas do levante, do mar. Transformado em estrategista pelas circunstancias, convenci os poucos habitantes do local da minha tese. Delimitamos juntos um perímetro e reforçamos com paus e correntes. Locamos, com um engenheiro do DNER, a estrada para o limbo vizinho pelo bordo do mar para evitar que os invasores se apropriassem da praia.
Não assisti a invasão lenta, mas pertinaz, porque tinha que retornar à chamada civilização, mas acompanhei pelos jornais e pelos depoimentos dos retirantes que foram expulsos de lá. Estava ansioso em saber até que ponto a estratégia adotada havia funcionado e o que havia sido destruído e salvo. Voltei recentemente, depois de 33 anos. Cheguei em um dia especial, o Ano-Novo, e quase não reconheci o lugar. Não que tenha sido totalmente devastado, podia-se ainda reconhecer a topografia, senão ocupado por milhares de almas de arribação que como nuvem de gafanhotos consumia tudo que encontrava pela frente.
Como na Grécia, deuses do Olimpio Global e da MPB baixavam do céu e se misturavam aos mortais, fingindo o anonimato. Conhecidas vestais e ninfetas, protegidas apenas por grandes óculos escuros e diminutas tangas exibiam-se ecologicamente nas praias mais distantes, indiferentes aos fiéis fãs. O paraíso, mesmo invadido, tem seus códigos, ninguém é de ninguém.
O leitor, naturalmente, quer saber se existe realmente o Éden e onde fica? Posso afiançar que sim, embora tenha variado de lugar em função da época. Na antiguidade ficava em algum ponto entre o Sinai e o Eufrates. Para os utopistas do Renascimento e para Sérgio e Chico Buarque de Holanda, abaixo da linha do Equador. Para os brasileiros consumidores e aficionados de camundongos a eletrônicos, entre Miami e Orlando. Para muitos outros, que buscam apenas uma terra onde não existe o pecado, fica em uma angra segura, como observou o nosso ex-ministro Sergio Rouanet..
Entrei pela parte baixa da cidade e, ao invés de um paraíso, tive a impressão que me encontrava em Bom Jesus da Lapa ou em Aparecida durante a festa da padroeira. Os romeiros chegavam de todas as partes: das Minas Gerais, de Goiás, de Brasília, de São Paulo, da própria Bahia em ônibus, aviões, carros e a pé. Digladiavam-se pelas poucas vagas nos hotéis, hospedarias, casas de família, assentos e bagageiros de ônibus. Outros armavam barracas de lona na praia. Havia, inclusive, os prevenidos, que traziam suas casas nas costas, como caramujos, sob a forma de roulotes, caravans e motorhomes. Nos restaurantes, cabanas, bares, rodoviária e aeroporto a mesma disputa pelo espaço.
Ao invés da passarela da Basílica Nova ou o caminho da gruta, os penitentes dirigiam-se com igual devoção a uma passarela bem mais prosaica, a do álcool, onde se misturavam a química dos alambiques com sucos de frutas naturais. Em lugar de trazerem ex-votos, levam posters, camisetas e bonés como talismãs para si próprios, parentes e amigos. A cidade de uma só porta, sem esgoto e com deficientes serviços urbanos, entra em colapso com a duplicação de sua população, todo verão. Filas intermináveis de carros e ônibus, à espera da balsa de Ajuda, serpenteavam pelas ruas estreitas da cidade, enquanto guardas de trânsito apitam desesperados e inutilmente. Como se não bastasse, trios elétricos, conjuntos musicais e carros de som aumentam a poluição sonora da cidade.
Mas toda aquela “zona” tem uma certa alegria juvenil e ingênua de uma sociedade tribal Inspirada nos Pataxós. Dá-se uma trégua ao preconceito, mas sem descuidar da camisinha e da pílula. Ao contrário de Morro de São Paulo, espécie de Gangis brasileiro, em cujas praias, velhas e caquéticos gurus e seus asseclas esperam a volta ao pó, Porto Seguro tem um astral jovem. E o relógio continua a não funcionar no ex-paraíso.
Por vigilância do IPHAN, para quem fiz a missão preventiva, Porto Seguro não se verticalizou e descobre-se, quando se cruza o limbo de Cabrália, que existe alguma ordem na desordem das praias de Porto Seguro. A Coroa Vermelha, berço da nação, que poderia ser o parque primaz do Brasil, como Stonehenge é para a Grã-Bretanha, foi transformado em mercado e bar. Junto a ela se permitiu a formação de uma favela de descendentes de índios mercenários. As demais praias de Cabrália estão ocupadas por loteamentos caóticos e ordinários.
O consumismo é a marca da cultura turística da cidade baixa de Porto Seguro. A própria arquitetura se transformou em veículo de vendas. As fachadas pintadas de rosa-choque, amarelo-limão, vermelho-sangue-de-boi de suas pequenas casas servem de suporte a cardápios de restaurantes, ofertas de boutiques, roteiros de viagem de escuna e ônibus. Há uma poluição de mensagens comerciais que inviabiliza a própria propaganda. É neste contexto que se insere o neo e o pós-colonial. Do telefone ao posto de gasolina e ao shopping center nada é vendável se não for colonial ou seu derivado. As adulterações do autêntico e a farsa dos pastiches confundem até os iniciados e negam a própria historicidade local.
Voltei à velha atalaia, à Cidade Alta, preservada em parte do automóvel e do consumo pelas correntes que pusemos há 35 anos, antes da chegada do primeiro carro pela BR-101 e BR-367. Revi a pequena Esplanada do Descobrimento que risquei na areia como uma cruz, em minha primeira visita, com seu marco de pedra plantado no cruzamento cortando a linha infinita do horizonte.
Uma outra corrente, ou melhor torrente, o Buranhém, tem protegido Ajuda e Trancoso da correição infernal de ônibus, roulotes e carros. Para preservarmos seu verde e a vida bucólica é necessário que impeçamos, a todo o custo, que as saúvas mecânicas lancem uma ponte sobre o Buranhém e arrasem o que ainda resta da Mata Atlântica e de vida comunitária.
Ao sopé da falésia, mirando os lençóis-de-areia infinitos e a lâmina de água marinha cortando a abóbada de cobalto, vejo que em direção ao levante tudo é ainda íntegro e novo como no dia da criação, não obstante a invasão da terra. Salvamos a atalaia do conquistador, à cavaleiro do oceano misterioso e imprevisível, mas não basta manter uma janela para o levante, é necessário preservar a mata, a cultura local, a ausência do relógio e do pecado, é isto que faz a diferença do Éden e não apenas a paisagem oceânica.

SSA: Caderno 2 de A Tarde, 13/02/1994


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