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Retorno ao Éden
O paraíso me pareceu constituído de lençóis brancos ondulados que eram
banhados por transparentes aguas marinhas, sob uma cúpula de cobalto.
Impressionou-se a ausência do tempo, a linha infinita do horizonte, o hálito da
maresia, os insetos e plantas exóticas, a solidão do lugar. Tudo intocado como
no quinto dia da criação. Cheguei voando, porque para o paraíso não havia
estradas. Estive ali não por morte ou prêmio de virtudes que não possuo, senão
por encargo de ofício. Para os mortais era o ano de 1961.
Já se pressentia a ameaça de uma invasão que podia destruir aquele paraíso. No
fundo, minha presença ali estava ligada, como um Quixote tupiniquim, a tentar
prevenir o impacto da invasão. Tentei dissimular a tragédia anunciada acordando
bem cedo, na madrugada, para evitar que aquele sonho se transformasse em
pesadelo. De balde, voltava a sonhar acordado. Passado o desapontamento inicial,
raciocinei: os invasores virão do poente e não temos como resistir quando
abrirem os acessos ao paraíso. Mas poderemos salvar uma parte do Éden, aquela
que se desenvolve na borda da falésia, desde que reforcemos as atalaias criadas
pelos fundadores, para se defenderem de outras ameaças, essas vindas do levante,
do mar. Transformado em estrategista pelas circunstancias, convenci os poucos
habitantes do local da minha tese. Delimitamos juntos um perímetro e reforçamos
com paus e correntes. Locamos, com um engenheiro do DNER, a estrada para o limbo
vizinho pelo bordo do mar para evitar que os invasores se apropriassem da praia.
Não assisti a invasão lenta, mas pertinaz, porque tinha que retornar à chamada
civilização, mas acompanhei pelos jornais e pelos depoimentos dos retirantes que
foram expulsos de lá. Estava ansioso em saber até que ponto a estratégia adotada
havia funcionado e o que havia sido destruído e salvo. Voltei recentemente,
depois de 33 anos. Cheguei em um dia especial, o Ano-Novo, e quase não reconheci
o lugar. Não que tenha sido totalmente devastado, podia-se ainda reconhecer a
topografia, senão ocupado por milhares de almas de arribação que como nuvem de
gafanhotos consumia tudo que encontrava pela frente.
Como na Grécia, deuses do Olimpio Global e da MPB baixavam do céu e se
misturavam aos mortais, fingindo o anonimato. Conhecidas vestais e ninfetas,
protegidas apenas por grandes óculos escuros e diminutas tangas exibiam-se
ecologicamente nas praias mais distantes, indiferentes aos fiéis fãs. O paraíso,
mesmo invadido, tem seus códigos, ninguém é de ninguém.
O leitor, naturalmente, quer saber se existe realmente o Éden e onde fica? Posso
afiançar que sim, embora tenha variado de lugar em função da época. Na
antiguidade ficava em algum ponto entre o Sinai e o Eufrates. Para os utopistas
do Renascimento e para Sérgio e Chico Buarque de Holanda, abaixo da linha do
Equador. Para os brasileiros consumidores e aficionados de camundongos a
eletrônicos, entre Miami e Orlando. Para muitos outros, que buscam apenas uma
terra onde não existe o pecado, fica em uma angra segura, como observou o nosso
ex-ministro Sergio Rouanet..
Entrei pela parte baixa da cidade e, ao invés de um paraíso, tive a impressão
que me encontrava em Bom Jesus da Lapa ou em Aparecida durante a festa da
padroeira. Os romeiros chegavam de todas as partes: das Minas Gerais, de Goiás,
de Brasília, de São Paulo, da própria Bahia em ônibus, aviões, carros e a pé.
Digladiavam-se pelas poucas vagas nos hotéis, hospedarias, casas de família,
assentos e bagageiros de ônibus. Outros armavam barracas de lona na praia.
Havia, inclusive, os prevenidos, que traziam suas casas nas costas, como
caramujos, sob a forma de roulotes, caravans e motorhomes. Nos restaurantes,
cabanas, bares, rodoviária e aeroporto a mesma disputa pelo espaço.
Ao invés da passarela da Basílica Nova ou o caminho da gruta, os penitentes
dirigiam-se com igual devoção a uma passarela bem mais prosaica, a do álcool,
onde se misturavam a química dos alambiques com sucos de frutas naturais. Em
lugar de trazerem ex-votos, levam posters, camisetas e bonés como talismãs para
si próprios, parentes e amigos. A cidade de uma só porta, sem esgoto e com
deficientes serviços urbanos, entra em colapso com a duplicação de sua
população, todo verão. Filas intermináveis de carros e ônibus, à espera da balsa
de Ajuda, serpenteavam pelas ruas estreitas da cidade, enquanto guardas de
trânsito apitam desesperados e inutilmente. Como se não bastasse, trios
elétricos, conjuntos musicais e carros de som aumentam a poluição sonora da
cidade.
Mas toda aquela “zona” tem uma certa alegria juvenil e ingênua de uma sociedade
tribal Inspirada nos Pataxós. Dá-se uma trégua ao preconceito, mas sem descuidar
da camisinha e da pílula. Ao contrário de Morro de São Paulo, espécie de Gangis
brasileiro, em cujas praias, velhas e caquéticos gurus e seus asseclas esperam a
volta ao pó, Porto Seguro tem um astral jovem. E o relógio continua a não
funcionar no ex-paraíso.
Por vigilância do IPHAN, para quem fiz a missão preventiva, Porto Seguro não se
verticalizou e descobre-se, quando se cruza o limbo de Cabrália, que existe
alguma ordem na desordem das praias de Porto Seguro. A Coroa Vermelha, berço da
nação, que poderia ser o parque primaz do Brasil, como Stonehenge é para a
Grã-Bretanha, foi transformado em mercado e bar. Junto a ela se permitiu a
formação de uma favela de descendentes de índios mercenários. As demais praias
de Cabrália estão ocupadas por loteamentos caóticos e ordinários.
O consumismo é a marca da cultura turística da cidade baixa de Porto Seguro. A
própria arquitetura se transformou em veículo de vendas. As fachadas pintadas de
rosa-choque, amarelo-limão, vermelho-sangue-de-boi de suas pequenas casas servem
de suporte a cardápios de restaurantes, ofertas de boutiques, roteiros de viagem
de escuna e ônibus. Há uma poluição de mensagens comerciais que inviabiliza a
própria propaganda. É neste contexto que se insere o neo e o pós-colonial. Do
telefone ao posto de gasolina e ao shopping center nada é vendável se não for
colonial ou seu derivado. As adulterações do autêntico e a farsa dos pastiches
confundem até os iniciados e negam a própria historicidade local.
Voltei à velha atalaia, à Cidade Alta, preservada em parte do automóvel e do
consumo pelas correntes que pusemos há 35 anos, antes da chegada do primeiro
carro pela BR-101 e BR-367. Revi a pequena Esplanada do Descobrimento que
risquei na areia como uma cruz, em minha primeira visita, com seu marco de pedra
plantado no cruzamento cortando a linha infinita do horizonte.
Uma outra corrente, ou melhor torrente, o Buranhém, tem protegido Ajuda e
Trancoso da correição infernal de ônibus, roulotes e carros. Para preservarmos
seu verde e a vida bucólica é necessário que impeçamos, a todo o custo, que as
saúvas mecânicas lancem uma ponte sobre o Buranhém e arrasem o que ainda resta
da Mata Atlântica e de vida comunitária.
Ao sopé da falésia, mirando os lençóis-de-areia infinitos e a lâmina de água
marinha cortando a abóbada de cobalto, vejo que em direção ao levante tudo é
ainda íntegro e novo como no dia da criação, não obstante a invasão da terra.
Salvamos a atalaia do conquistador, à cavaleiro do oceano misterioso e
imprevisível, mas não basta manter uma janela para o levante, é necessário
preservar a mata, a cultura local, a ausência do relógio e do pecado, é isto que
faz a diferença do Éden e não apenas a paisagem oceânica.
SSA: Caderno 2 de A Tarde, 13/02/1994