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Baiandade

  • 31 de Janeiro de 2016

O caráter nacional tem sido um dos temas reiterativos de antropólogos e psicólogos. Costuma-se caracterizar os ingleses pela pontualidade, elegância e humor. Os argentinos como sendo italianos desterrados, que falam espanhol, se comportam como franceses, mas gostariam de ser ingleses. Na verdade, estas imagens se ajustam mais ao londrino com o big-bem marcando as horas da cidade e aos portenhos fanfarrões de La Boca. Essas imagens são geralmente construídas pelos de fora, mais que pelos locais. Com a limitação de ser um local, recebi um telefonema de uma jornalista de São Paulo de uma empresa de opinião pública, querendo saber como eu caracterizaria a baianidade. É tão raro jornalistas tratarem desses temas, que aceitei o desafio. Expliquei que poderia falar sobre ser soteropolitano ou no máximo reconcavino, mas não baiano, representante de um estado tão diversificado como a Bahia. Respondi suas perguntas bem formuladas, à queima roupa, e continuei remoendo o assunto.

“Baiano” no Sudeste e Sul é o migrante nordestino, pobre, atrapalhado e analfabeto. Mas esta imagem popular não é a mesma da classe média daquelas regiões. Para ela, baiano é o nascido em Salvador, terra da orgia perpetua, da licenciosidade, de vadias e gigolôs. Imagem difundida pela TV e pelo cinema inspirada em autores baianos. Este perfil é injustamente atribuído a Caymmi, que pelo contrário exaltou a faina dura dos jangadeiros e a fidelidade de suas mulheres, que os esperavam na praia, muitas vezes para sempre. Quando os apresentadores do Jornal Nacional abrem um amplo sorriso, já sei que é uma notícia ou reportagem caricatural sobre Salvador.

Mas qual seria a imagem que os soteropolitanos têm de si? Talvez aquela que exalta sua inteligência ou sagacidade na expressão: “baiano burro nasce morto”. Também esta imagem comporta duas interpretações. Para uma classe mais alta ela decorre de figuras como Gregório de Mattos, Antonio Vieira, Castro Alves, Rui Barbosa e Glauber Rocha. Para o povão, eles são pessoas habilidosas “que dão nó em pingo d’água” e “vestem suspensório em cobra”. Mas nenhuma das duas versões exprime o estado de espirito de ser baiano. Por sermos mais complexos, não temos um hino como os cariocas com o “Samba do Avião” de Jobim ou os paulistanos com “Sampa”, de Caetano. Acho importantes os depoimentos de visitantes, que não pretenderam criar uma imagem pública, senão registar sua percepção de nosso povo. Há muitos depoimentos neste sentido, a começar pelo de Caminha, mas me restringirei a um só e casual.

Um gerente de um hotel de Salvador me disse que foi procurado por um hóspede inglês que se apresentou como do ramo e perguntou se poderia fazer algumas observações sobre o hotel. O gerente ouviu suas observações pertinentes e perguntou sobre os funcionários. Ele disse, “do ponto de vista do treinamento é fraco, mas têm uma qualidade que eu pagaria qualquer preço na Inglaterra, mas não consigo. É o fato deles estabelecerem imediatamente uma relação afetiva com os hospedes”. Turistas se surpreendem como os soteropolitanos se tratam e aos visitantes de “meu rei, meu chapa” e “meu bem”.

Mais que sua arquitetura barroca e suas belas praias, o grande atrativo desta cidade, ao meu ver, são seus habitantes, com seu patrimônio imaterial de misticismo, musicalidade, fruição da vida e forma de falar, que as novelas e até mesmo a literatura não conseguem retratar. Isto não significa que tudo são rosas em Salvador e não exista muita violência no interior de nossa comunidade, senão que na vida cotidiana ainda sobrevive em Salvador relações humanas que já não existem em sociedades mais industrializadas e competitivas. Belo tema para um seminário da nossa universidade.

SSA, A Tarde, 31/01/16


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