Artigos de Jornal
Baiandade
O caráter nacional tem sido um dos temas reiterativos de antropólogos e
psicólogos. Costuma-se caracterizar os ingleses pela pontualidade, elegância e
humor. Os argentinos como sendo italianos desterrados, que falam espanhol, se
comportam como franceses, mas gostariam de ser ingleses. Na verdade, estas
imagens se ajustam mais ao londrino com o big-bem marcando as horas da cidade e
aos portenhos fanfarrões de La Boca. Essas imagens são geralmente construídas
pelos de fora, mais que pelos locais. Com a limitação de ser um local, recebi um
telefonema de uma jornalista de São Paulo de uma empresa de opinião pública,
querendo saber como eu caracterizaria a baianidade. É tão raro jornalistas
tratarem desses temas, que aceitei o desafio. Expliquei que poderia falar sobre
ser soteropolitano ou no máximo reconcavino, mas não baiano, representante de um
estado tão diversificado como a Bahia. Respondi suas perguntas bem formuladas, à
queima roupa, e continuei remoendo o assunto.
“Baiano” no Sudeste e Sul é o migrante nordestino, pobre, atrapalhado e
analfabeto. Mas esta imagem popular não é a mesma da classe média daquelas
regiões. Para ela, baiano é o nascido em Salvador, terra da orgia perpetua, da
licenciosidade, de vadias e gigolôs. Imagem difundida pela TV e pelo cinema
inspirada em autores baianos. Este perfil é injustamente atribuído a Caymmi, que
pelo contrário exaltou a faina dura dos jangadeiros e a fidelidade de suas
mulheres, que os esperavam na praia, muitas vezes para sempre. Quando os
apresentadores do Jornal Nacional abrem um amplo sorriso, já sei que é uma
notícia ou reportagem caricatural sobre Salvador.
Mas qual seria a imagem que os soteropolitanos têm de si? Talvez aquela que
exalta sua inteligência ou sagacidade na expressão: “baiano burro nasce morto”.
Também esta imagem comporta duas interpretações. Para uma classe mais alta ela
decorre de figuras como Gregório de Mattos, Antonio Vieira, Castro Alves, Rui
Barbosa e Glauber Rocha. Para o povão, eles são pessoas habilidosas “que dão nó
em pingo d’água” e “vestem suspensório em cobra”. Mas nenhuma das duas versões
exprime o estado de espirito de ser baiano. Por sermos mais complexos, não temos
um hino como os cariocas com o “Samba do Avião” de Jobim ou os paulistanos com “Sampa”,
de Caetano. Acho importantes os depoimentos de visitantes, que não pretenderam
criar uma imagem pública, senão registar sua percepção de nosso povo. Há muitos
depoimentos neste sentido, a começar pelo de Caminha, mas me restringirei a um
só e casual.
Um gerente de um hotel de Salvador me disse que foi procurado por um hóspede
inglês que se apresentou como do ramo e perguntou se poderia fazer algumas
observações sobre o hotel. O gerente ouviu suas observações pertinentes e
perguntou sobre os funcionários. Ele disse, “do ponto de vista do treinamento é
fraco, mas têm uma qualidade que eu pagaria qualquer preço na Inglaterra, mas
não consigo. É o fato deles estabelecerem imediatamente uma relação afetiva com
os hospedes”. Turistas se surpreendem como os soteropolitanos se tratam e aos
visitantes de “meu rei, meu chapa” e “meu bem”.
Mais que sua arquitetura barroca e suas belas praias, o grande atrativo desta
cidade, ao meu ver, são seus habitantes, com seu patrimônio imaterial de
misticismo, musicalidade, fruição da vida e forma de falar, que as novelas e até
mesmo a literatura não conseguem retratar. Isto não significa que tudo são rosas
em Salvador e não exista muita violência no interior de nossa comunidade, senão
que na vida cotidiana ainda sobrevive em Salvador relações humanas que já não
existem em sociedades mais industrializadas e competitivas. Belo tema para um
seminário da nossa universidade.
SSA, A Tarde, 31/01/16