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A classe-média desce a ladeira

  • 03 de Julho de 2016

O conceito de classe social não se baseia apenas na renda e na escolaridade, inclui valores que os sociólogos definem como ideologia. Na limitação desta coluna, vou me ater ao conceito corrente de classe-média: profissionais de nível superior servindo a empresas e ao governo, funcionários públicos e privados de nível médio e pequenos comerciantes. Essa classe foi sendo imprensada por duas forças contrarias. De um lado, o desabamento da burguesia industrial brasileira, que produzia e criava empregos, com a chegada das empresas transnacionais robotizadas. De outro, a ascensão, nos últimos 15 anos, da classe trabalhadora. Marilena Chauí tem razão quando afirma que os 40 milhões que saíram da pobreza não entraram na classe média, como afirma o IBGE, senão criaram uma classe trabalhadora com acesso ao consumo de massa, conquista que os trabalhadores europeus e americanos já haviam realizado há 50 anos.

A classe média deixou de ter emprego estável, escola secundaria de qualidade, universidade gratuita e privilégios como cozinheira e babás. Em Salvador, os colégios Central e Aplicação fecharam as portas, as cotas roubaram vagas nas universidades públicas e o Enem nivelou todos, acabando com a indústria do pré-vestibular, uma das alavancas de ingresso na universidade seletiva. Engenheiros, arquitetos, administradores e contadores passaram a ter contratos com a duração da obra. Moçoilas chiques são contratadas anualmente pelas butiques para as festas e em seguida demitidas. Devido à instabilidade do emprego, a classe média voltou a colocar os filhos na escola pública e enfrentar as filas do SUS.

Com a regulamentação do oficio de empregado doméstico, a classe-média teve que se conformar com uma diarista semanal. Avós passaram a cuidar e a levar e buscar os netos na escola, quando não a dividir a casa e a aposentadoria com os filhos. A global Ana Maria Braga se transformou em uma mestra-de-cozinha para a pequena burguesia. Executivos se reúnem em clubes gastronômicos para trocarem receitas e ajudarem às madames nos jantares. Não se encontra mais encanador, pintor e eletricista. As TVs, sintomaticamente, passaram a ensinar a desentupir a latrina e o ralo, envernizar o móvel velho e fazer a decoração de natal com garrafas pet.

Durante a Colônia e o Império, além dos donos de terra e de minas, que não trabalhavam, havia duas outras classes: os que exerciam as artes liberais, ou seja, trabalhavam com a cabeça, e os oficiais mecânicos, que labutavam com os braços. Essa divisão se estendeu à república. Atividades físicas exercidas por pessoas de menor renda, como sapateiros e lavadores de carros vão sendo realizadas por franqueados nos shoppings. Barbeiros e cabeleiras são agora de classe média nos salões de beleza. Ambulantes que vendiam cachorro-quente e garapa são desbancados por “food trucks” de classe média. Muitos motoristas conseguiram comprar um taxi e sua licença, mas enfrentam hoje a concorrência dos mauricinhos do “uber”, com carro, mas sem emprego.

Esta situação foi produzida ironicamente por duas forças antagônicas: a expansão do capitalismo financeiro, que prefere importar a produzir, e de um partido que resgatou milhares da pobreza, mas não conseguiu fazer as reformas que consolidassem o processo. Voltamos ao ciclo da agricultura, da pecuária e da mineração, não mais do açúcar, do couro e do ouro, senão da soja, da carne e do ferro sem valor agregado. Lula, como Getúlio, tentou conciliar a força de trabalho com o capital e se deu mal. Esqueceu que a classe média é a que faz as revoluções. Danton, Lincoln, Lenine, Mao, e Guevara eram da pequena burguesia. As manifestações de junho de 2013, de uma classe média enfraquecida, isolada e sem pensamento não tiveram força suficiente para deflagrar mínimas reformas que o país necessita e muito menos uma revolução social. Não será um governo provisório que o terá. Há 70 anos somos o país do futuro que nunca chega.

SSA: A Tarde, 03/07/16


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