Artigos de Jornal
A classe-média desce a ladeira
O conceito de classe social não se baseia apenas na renda e na escolaridade,
inclui valores que os sociólogos definem como ideologia. Na limitação desta
coluna, vou me ater ao conceito corrente de classe-média: profissionais de nível
superior servindo a empresas e ao governo, funcionários públicos e privados de
nível médio e pequenos comerciantes. Essa classe foi sendo imprensada por duas
forças contrarias. De um lado, o desabamento da burguesia industrial brasileira,
que produzia e criava empregos, com a chegada das empresas transnacionais
robotizadas. De outro, a ascensão, nos últimos 15 anos, da classe trabalhadora.
Marilena Chauí tem razão quando afirma que os 40 milhões que saíram da pobreza
não entraram na classe média, como afirma o IBGE, senão criaram uma classe
trabalhadora com acesso ao consumo de massa, conquista que os trabalhadores
europeus e americanos já haviam realizado há 50 anos.
A classe média deixou de ter emprego estável, escola secundaria de qualidade,
universidade gratuita e privilégios como cozinheira e babás. Em Salvador, os
colégios Central e Aplicação fecharam as portas, as cotas roubaram vagas nas
universidades públicas e o Enem nivelou todos, acabando com a indústria do
pré-vestibular, uma das alavancas de ingresso na universidade seletiva.
Engenheiros, arquitetos, administradores e contadores passaram a ter contratos
com a duração da obra. Moçoilas chiques são contratadas anualmente pelas
butiques para as festas e em seguida demitidas. Devido à instabilidade do
emprego, a classe média voltou a colocar os filhos na escola pública e enfrentar
as filas do SUS.
Com a regulamentação do oficio de empregado doméstico, a classe-média teve que
se conformar com uma diarista semanal. Avós passaram a cuidar e a levar e buscar
os netos na escola, quando não a dividir a casa e a aposentadoria com os filhos.
A global Ana Maria Braga se transformou em uma mestra-de-cozinha para a pequena
burguesia. Executivos se reúnem em clubes gastronômicos para trocarem receitas e
ajudarem às madames nos jantares. Não se encontra mais encanador, pintor e
eletricista. As TVs, sintomaticamente, passaram a ensinar a desentupir a latrina
e o ralo, envernizar o móvel velho e fazer a decoração de natal com garrafas pet.
Durante a Colônia e o Império, além dos donos de terra e de minas, que não
trabalhavam, havia duas outras classes: os que exerciam as artes liberais, ou
seja, trabalhavam com a cabeça, e os oficiais mecânicos, que labutavam com os
braços. Essa divisão se estendeu à república. Atividades físicas exercidas por
pessoas de menor renda, como sapateiros e lavadores de carros vão sendo
realizadas por franqueados nos shoppings. Barbeiros e cabeleiras são agora de
classe média nos salões de beleza. Ambulantes que vendiam cachorro-quente e
garapa são desbancados por “food trucks” de classe média. Muitos motoristas
conseguiram comprar um taxi e sua licença, mas enfrentam hoje a concorrência dos
mauricinhos do “uber”, com carro, mas sem emprego.
Esta situação foi produzida ironicamente por duas forças antagônicas: a expansão
do capitalismo financeiro, que prefere importar a produzir, e de um partido que
resgatou milhares da pobreza, mas não conseguiu fazer as reformas que
consolidassem o processo. Voltamos ao ciclo da agricultura, da pecuária e da
mineração, não mais do açúcar, do couro e do ouro, senão da soja, da carne e do
ferro sem valor agregado. Lula, como Getúlio, tentou conciliar a força de
trabalho com o capital e se deu mal. Esqueceu que a classe média é a que faz as
revoluções. Danton, Lincoln, Lenine, Mao, e Guevara eram da pequena burguesia.
As manifestações de junho de 2013, de uma classe média enfraquecida, isolada e
sem pensamento não tiveram força suficiente para deflagrar mínimas reformas que
o país necessita e muito menos uma revolução social. Não será um governo
provisório que o terá. Há 70 anos somos o país do futuro que nunca chega.
SSA: A Tarde, 03/07/16