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Memorial das cinzas
A tragédia do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista é o retrato do
sucateamento a que chegou as instituições, a ciência e a cultura brasileira. Não
são apenas 200 anos de história do Brasil e o fato de ali ter residido um
negreiro, um rei e dois imperadores escravocratas, em pleno iluminismo, senão
110 milhões de anos de flora e fauna do cretáceo consumidos em quatro horas. Da
presença humana, o crâneo de Luiza, datado de 11.500 anos, era a peça mais
importante, porque provava que os primeiros habitantes das Américas eram negros,
que vieram da Austrália. Mas havia também sarcófagos e múmias egípcias e
americanas pré-colombianas.
Apenas itens líticos, como meteoritos e coleções de mineralogia podem ter
sobrevivido, se não foram danificados pelo choque térmico da agua dos bombeiros.
Perdeu-se também milhões de horas de pesquisa de cientistas em cavernas, sob o
sol dos gerais e das catingas e nos laboratórios do museu classificando e
analisando seus 20 milhões de itens de geologia, paleontologia, botânica,
zoologia, antropologia e arqueologia de importância universal. A Unesco compara
a tragédia do Rio com a destruição de Palmira na Síria pelo terrorismo. Não
menos importante é a frustação das gerações futuras de crianças, que não poderão
descobrir, com espanto, que os dinossauros existiram no Brasil e não eram apenas
fantasias de Spielberg.
Por que isso aconteceu? Porque nossas autoridades não valorizam a história, a
ciência e a cultura. Porque não temos planejamento, nem recursos para manutenção
nos orçamentos públicos. Nos 200 anos da instituição, apenas a homenagem de uma
favela carioca no último carnaval. Na festa do aniversário nenhum ministro.
Depoimentos de funcionários e vídeos assinalam seu péssimo estado de
conservação, com cimalhas caindo, peças de madeira destruídas pelos cupins e
gambiarras. Nenhum sistema de detecção de fumaça e combate ao fogo, sem uso de
agua.
O que se perdeu não há como recuperar. O que se pode fazer então? Reunir toda a
informação cientifica que deve haver nos notebooks dos pesquisadores, e por
ventura em outros museus e universidades no exterior que realizavam pesquisas em
convênio com ele. O mesmo com a documentação iconográfica e de vídeos das TVs e
particulares. Impressoras 3D poderão reproduzir, em plástico, fosseis e múmias
que tenham sido escaniados em 3D. Por sorte, a biblioteca com 240.000 volumes,
dos quais 2.400 são obras raras, fica em outro pavilhão e não foi afetada. Com
essa documentação será possível criar um museu virtual, como o da Língua
Portuguesa, que poderá ser educativo e belo, mas não terá a aura do original,
será apenas um memorial das cinzas, enquanto se refaz seu acervo com uma
campanha mundial de doações e novas expedições de campo.
SSA: A tarde de 09/09/18