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Nevasca em pleno verão

  • 16 de Dezembro de 2018

A neve começou a cair desde cedo. Seus flocos eram trazidos pelo vento e começaram a se embaraçar na tela da varanda do apartamento em que me encontrava e a formar belos desenhos. Milhares de flocos continuavam a cair. Nunca tinha visto aquilo num verão nas minhas viagens e muito menos no Brasil. Liguei a TV para saber o que estava acontecendo e procurei, em vão, na internet um meteorologista para explicar o fenômeno. O mais incrível é que ninguém se espantava. Lá em baixo os carros nem paravam. A neve na varanda não se derretia, apesar do aumento do calor. Pensei que podia ser um milagre de Natal.

Lembrei-me da minha infância e as primeiras imagens de campos nevados com pinheiros. Uma paisagem tão estranha para nós nordestinos, cujo primeiro sinal do Natal era o anuncio da chegada da chuva com a floração do mandacaru cantada por Luiz Gonzaga. Os out-doors mostravam renas puxando um trenó com um velhinho vestido de vermelho e arminho e uma touca de pompom. O velhinho bebia um líquido pardo no gargalo da garrafa. Na Bahia, na época, se bebia gasosas cristalinas dos “irmãos Fratelii Vita” em canecas ou copos, ao natural, pois poucas casas e bares possuíam as luxuosas Frigidaire.

O Natal começava com a preparação do presépio, geralmente uma lapinha ou gruta formada pela folhagem de pitangueiras olorosas, com a manjedoura, a sagrada família, o boi, a vaca. o jumento e os reis magos. A paisagem de Belém era reproduzida com papel craft amassado povoado de casinhas e as crianças enchiam o presépio com todo tipo de bibelôs e caxixis. Não podia faltar o cometa sobre a manjedoura. Os Magnavita, da Calábria, faziam um grande presépio na sua casa na Lapa com cascatas, rodas d’águas e até um trenzinho elétrico milenar.

Quando os vermelhos, com suas artes do diabo, lançaram o Sputnik, meu pai, Thales de Azevedo, católico de boa cepa, escreveu neste jornal “Coloquemos o Sputnik no presépio” exaltando aquele complemento ao quarto dia da Criação como uma conquista de toda a humanidade. Jorge Amado enviou um cartão a ele louvando sua coragem e clarividência diante do maniqueísmo raivoso de então.

O comunismo ateu acabou, mas quem enterrou a bela tradição mediterrânea do presépio foi a publicidade subliminar da Coca Cola, que só podia ser bebida bem gelada, pois tinha gosto do sabão Aristolino, introduzindo a neve de algodão, o jinge bells, os pinheiros reluzentes e o Santa Cláus (Noel) consumista, que se adentrava nas casas nordestinas pela chaminé da lareira. Com essa, despertei de meu sonho e percebi que a neve vinha da imensa paineira do Campo Grande em direção ao apartamento de meu filho. O milagre de Natal não era a neve no calor, senão a revelação de que de uma minúscula semente pode nascer uma árvore gigante. Merry Christimas!

SSA: A Tarde de 16/12/18


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