Artigos de Jornal
Nevasca em pleno verão
A neve começou a cair desde cedo. Seus flocos eram trazidos pelo vento e
começaram a se embaraçar na tela da varanda do apartamento em que me encontrava
e a formar belos desenhos. Milhares de flocos continuavam a cair. Nunca tinha
visto aquilo num verão nas minhas viagens e muito menos no Brasil. Liguei a TV
para saber o que estava acontecendo e procurei, em vão, na internet um
meteorologista para explicar o fenômeno. O mais incrível é que ninguém se
espantava. Lá em baixo os carros nem paravam. A neve na varanda não se derretia,
apesar do aumento do calor. Pensei que podia ser um milagre de Natal.
Lembrei-me da minha infância e as primeiras imagens de campos nevados com
pinheiros. Uma paisagem tão estranha para nós nordestinos, cujo primeiro sinal
do Natal era o anuncio da chegada da chuva com a floração do mandacaru cantada
por Luiz Gonzaga. Os out-doors mostravam renas puxando um trenó com um velhinho
vestido de vermelho e arminho e uma touca de pompom. O velhinho bebia um líquido
pardo no gargalo da garrafa. Na Bahia, na época, se bebia gasosas cristalinas
dos “irmãos Fratelii Vita” em canecas ou copos, ao natural, pois poucas casas e
bares possuíam as luxuosas Frigidaire.
O Natal começava com a preparação do presépio, geralmente uma lapinha ou gruta
formada pela folhagem de pitangueiras olorosas, com a manjedoura, a sagrada
família, o boi, a vaca. o jumento e os reis magos. A paisagem de Belém era
reproduzida com papel craft amassado povoado de casinhas e as crianças enchiam o
presépio com todo tipo de bibelôs e caxixis. Não podia faltar o cometa sobre a
manjedoura. Os Magnavita, da Calábria, faziam um grande presépio na sua casa na
Lapa com cascatas, rodas d’águas e até um trenzinho elétrico milenar.
Quando os vermelhos, com suas artes do diabo, lançaram o Sputnik, meu pai,
Thales de Azevedo, católico de boa cepa, escreveu neste jornal “Coloquemos o
Sputnik no presépio” exaltando aquele complemento ao quarto dia da Criação como
uma conquista de toda a humanidade. Jorge Amado enviou um cartão a ele louvando
sua coragem e clarividência diante do maniqueísmo raivoso de então.
O comunismo ateu acabou, mas quem enterrou a bela tradição mediterrânea do
presépio foi a publicidade subliminar da Coca Cola, que só podia ser bebida bem
gelada, pois tinha gosto do sabão Aristolino, introduzindo a neve de algodão, o
jinge bells, os pinheiros reluzentes e o Santa Cláus (Noel) consumista, que se
adentrava nas casas nordestinas pela chaminé da lareira. Com essa, despertei de
meu sonho e percebi que a neve vinha da imensa paineira do Campo Grande em
direção ao apartamento de meu filho. O milagre de Natal não era a neve no calor,
senão a revelação de que de uma minúscula semente pode nascer uma árvore
gigante. Merry Christimas!
SSA: A Tarde de 16/12/18