Artigos de Jornal
A história em processo
É muito difícil contar a história enquanto ela está acontecendo. A guinada de
180º ocorrida nas eleições de 2018 vai consumir muito tempo de cientistas
políticos, historiadores e sociólogos para interpretá-la. A virada de 2003
ocorreu depois de 14 anos de gestação e o candidato de esquerda só venceu na
quarta tentativa. A de 2018 explodiu em três meses. As explicações correntes são
os fake news e a corrupção no PT. Mas por que um partido com mais seguidores e
estrutura que o PSL, não venceu? Para um cientista social a questão é bem mais
complicada, ela estaria relacionada à crise econômica, à ascensão de camadas
sociais com outros valores, à expansão das igrejas evangélicas, ao
fortalecimento dos lobbies, à insegurança urbana etc.
A principal fonte da história em processo são matérias publicadas na mídia. A do
momento é a recente entrevista de Lula a El País e à Folha de São Paulo. Lula se
comportou mais como um observador participante, que como um preso deprimido e
ressentido. Analisa o processo político brasileiro nos últimos 16 anos em que
ele foi um dos protagonistas. Diz que tirou o Brasil da recessão e do
endividamento fazendo a acumulação e a distribuição da renda, ao mesmo tempo.
Contesta que o projeto da Previdência vá zerar o déficit fiscal e tirar o país
da recessão. Para ele, só a distribuição da renda pode reativar a economia. Dá
mais peso aos movimentos sociais e políticos que a ação de protagonistas, só
comentando eles quando provocado. Não contesta a eleição de Bolsonaro, e tenta
explicar a derrota do PT pela desunião da esquerda e enfraquecimento do
movimento sindical que é hoje muito diferente dos anos 80 e precisa ser
reinventado. O PT perdeu uma eleição, mas continua vivo. Quem desapareceu foi o
PSDB.
Ele não pensa em se suicidar e nem trocar sua dignidade pela liberdade, porque
tem a obsessão de desmascarar o ex-juiz Moro e provar sua inocência. Sobre a
vida na prisão afirmou: “É engraçado porque eu sempre tive vontade de morar
sozinho... hoje faço isso...mas eu curto a solidão, tentando aprender,
mentalizar minha espiritualidade, tentando gostar mais do ser humano, tentar
ficar um pouco mais humano. Eu acho que eu vou sair daqui melhor do que eu
entrei”. O leitor pode não acreditar na fala de Lula, mas não que ele está
esclerosado, como supõe Dória.
Tanto assim, que o site de El País bateu recorde de audiência e aqui a
entrevista viralizou com dez milhões de acessos. O que mais irritou os
governistas foi ele dizer que “o Brasil é governado por um bando de maluco”. Não
por acaso a frase virou manchete de jornais como New York Times, Washington
Post, Le Monde, Le Fígaro e Clarin, que já não se surpreendem com declarações
empoladas e desarticuladas de ministros e do guru/astrólogo oficial e seus
acólitos.
SSA: A Tarde de 5/5/2019