Artigos de Jornal
Arquitetura Baiana: a contribuição regionalista
A caracterização de uma arquitetura baiana tem sido objeto de alguma
discussão recente na nossa Faculdade de Arquitetura da UFBA. Ano passado
organizamos um curso de extensão na universidade, “Arquitetura Baiana
Revisitada”, onde tentamos identificar com os alunos as principais tipologias
arquitetônicas de Salvador. No início do presente ano, discutimos com outros
professores a mesma questão na mesa-redonda “Arquitetura na Bahia, qual?” O tema
foi novamente trazido à tona durante o “Seminário Internacional de
Requalificação Urbana e Cultura da Cidade”, quando o professor italiano Angelo
Bugatti perguntou aos presentes se havia uma tipologia de arquitetura
tradicional no Pilar, objeto de estudo daquele seminário.
É evidente que existe, e não só no Pilar, como em toda mancha urbana ocupada até
meados do século XX, como pode ser verificado no primeiro levantamento
aerofotogramétrico de Salvador. A tipologia dominante das edificações ali
registrada estava, como é natural, associada a uma determinada morfologia
urbana, caracterizada por ruas corredores, que seguiam as cumeadas da primeira e
segunda linhas de colinas do sítio de Salvador. Estava relacionada também com o
modelo de parcelamento urbano, constituído por lotes com frentes estreitas, de
5,5 a 7,0 m, excepcionalmente 9,0 m, e grande profundidade dos lotes, podendo
chegar a 35,0 m ou mais. Deixemos de parte os grandes monumentos.
A única variante àquela morfologia urbana encontrava-se na mancha matriz da
cidade, de traçado geométrico renascentista, não linear. Ali, a par com a
tipologia arquitetônica descrita, existiam casas nobres com pátios centrais,
como o Palácio Arquiepiscopal e os solares Berquó e Saldanha, viabilizados por
um parcelamento mais generoso, que os que se seguiriam. A partir da década de
1930, por interferência da Prefeitura, começam a surgir loteamentos de casinhas
isoladas, que somados às primeiras invasões determinariam o aparecimento de
novas tipologias arquitetônicas, ao tempo que as tradicionais cediam lugar a
edifícios de apartamentos.
Os lotes estreitos e compridos referidos eram ocupados por casas ou sobrados
estruturados por um corredor longitudinal que ligava a sala de visitas,
debruçada sobre a rua, à sala de jantar, aberta para o quintal. Entre essas duas
salas perfilavam-se as alcovas, sem iluminação, mas ventiladas pelo
corredor-túnel. Nas casas mais simples, conhecidas como “meias moradas”, o
corredor ficava em um dos lados. Nas “moradas inteiras”, mais largas e ricas, no
centro. Essas construções não eram exclusivamente habitacionais. Nos sobrados
residências, o térreo tinha função comercial ou de depósito. Havia também
sobrados de função só comercial ou institucional, cuja tipologia não diferia
muito dos primeiros.
A rigor essa tipologia não é exclusivamente baiana. O arquiteto Francês Louis
Vauthier, que viveu no Recife entre 1840 e 1846, descrevia um desses sobrados e
afirmava: “quem viu uma casa brasileira, viu quase todas”. Nós diríamos,
inclusive, que ela não é só brasileira. Ela tem origem medieval e pode ser
encontrada, com pequenas variações, na Península Ibérica e em outras regiões
européias, como os Países Baixos. Na Espanha é conhecida como casa chorizo e na
Itália, como casa schiera ou em fileira.
A partir do segundo quartel do século XIX, a casa tradicional começa a se
afastar de umas das divisas do lote, já agora mais largo, formando uma passagem
ou jardim lateral por onde se fazia o ingresso e chegava luz às alcovas, sem,
contudo, modificar significativamente a planta do edifício. Por influência
europeia, difundem-se nas cidades brasileiras, a partir de meados do século,
viletas ecléticas burguesas, em meio a grandes lotes urbanos. De que foi
exemplo, nesta cidade, o Corredor da Vitória e, mais tarde, em São Paulo, a
Avenida Paulista.
Mas a invenção da arquitetura brasileira estava sendo feita na zona rural, nas
casas–grandes e de trabalhadores assalariados dos engenhos. Sem as limitações
dos lotes medievais, elas vão, pouco a pouco, libertando-se dos modelos
europeus. As casas-grandes retratadas pelos pintores de Nassau, no Nordeste,
ainda seguem o padrão português: depósito agrícola no térreo e residência
elevada, com acesso por escada externa. Um balcão entalado, no primeiro andar,
permitia algum desafogo visual. Contudo, o sistema construtivo já era outro:
estrutura independente de madeira fechada por tabiques de pau-a-pique, em lugar
dos tradicionais muros estruturais portugueses, de pedra, alvenaria mista ou
adobe.
Embora a descrição testamentária da casa de Mem de Sá (século XVI), em São
Francisco do Conde, insinue que se tratava de uma casa avarandada e térrea, a
sede de engenho rodeada de varandas e colunas só começaria a difundir-se em
meados do século XVIII, numa faixa litorânea, que ia do Recôncavo baiano ao Rio
de Janeiro. Esta foi, como dissemos, uma criação original. Nossos construtores
virariam literalmente a casa rural portuguesa pelo avesso, adequando-a, não só
ao ambiente tropical, como à família patriarcal extensiva. As circulações em
torno do pátio interior da casa portuguesa se transformariam em varandas
periféricas no Brasil. De uma casa introspectiva, voltada para os pátios
interiores, com pequenas aberturas para o exterior, passa-se a uma casa
totalmente aberta, mas que se protege da chuva e do sol com largos beirais e
varandas permeáveis as brisas. Ao invés da pesada e gris estrutura de pedra do
Norte, ou de adobe, alvíssimo, do Sul de Portugal, surge uma estrutura
independente de madeira, recoberta por enormes telhados que se prolongam em
largas varandas, só possíveis pela abundância de madeira. Uma casa como uma
árvore tropical, com uma enorme copa horizontal.
Alguns historiadores de arquitetura teimam em negar a originalidade dessa casa
árvore, afirmando que seus elementos constitutivos já existiam na arquitetura
lusa. Não percebem que há uma imensa diferença sócio-funcional e morfológica
entre um balcão entalado e elevado da casa do Norte de Portugal e a varanda
brasileira, situada ao nível do chão e concebida como transição ambiental e
social entre o exterior liberado e quente e o interior excludente e sombrio da
casa patriarcal. Esta transição estava presente também nas capelas alpendradas,
este sim um elemento peninsular, mas reinterpretado aqui e rebatizado pelo índio
como “copiar”.
Os arquitetos modernistas baianos retornam alguns desses elementos dentro de uma
nova sintaxe formal. Grandes e altos telhados permitiriam interessantes jogos
espaciais com pés-direitos duplos, mezaninos em balanço e águas furtadas que
captam seletivamente a luz exterior. Painéis de vidro substituem os tabiques de
pau-a-pique, deixando à mostra esteios estruturais, dando maior transferência e
brilho à casa. As varandas passam a fazer a transição entre os jardins e os
pátios ensolarados de piscina e o interior aconchegante e sombreado. Foi
pioneiro dessa arquitetura Diógenes Rebouças, com as primeiras experiências em
Itabuna e no Morro do Ipiranga, em Salvador, ainda na década de 1950. Essas
experiências seriam enriquecidas e tornadas mais leves por seus alunos mais
próximos, como Assis Reis, Paulo Ormindo, Gilberbet Chaves, Wilson Andrade,
Firmo de Azevedo e Ivan Smarcevski, entre outros. A esses se somaram os foâneos
Carl Von Hausenchild e Rui Cores.
Esta expressão regionalista, embora nascida na Bahia, se difundiria rapidamente
em todo o Nordeste, dando origem a uma tipologia arquitetônica hoje de domínio
comum. Querem alguns críticos classificar essa produção de neocolonial, por usar
materiais tradicionais – telha e madeira – e burguesa, por descender da
arquitetura dos barões do açúcar. Seus iniciadores não decalcaram nada, senão
tomaram da autêntica arquitetura brasileira o que ela tinha de mais valioso, sua
atitude ecológica. Incorporaram às suas obras elementos distributivos tropicais,
como varandas-circulação e águas-furtadas, e materiais tradicionais, de
insuperável eficiência térmica e permeabilidade, como as telhas árabes e
treliças. Mas sempre associando-os a novas funções e significados.
Em segundo lugar, o neocolonial praticado no país, nas décadas de 1930 e 1940,
não tinha nenhuma dessas características ecológicas. Tirado os pioneiros, como
Ricardo Severo, José Mariano Filho e alguns arquitetos que buscavam raízes para
a arquitetura brasileira dominada pelo ecletismo europeu, o neocolonial
brasileiro se transformou em um modismo da classe média inspirado no chamado
Mission Style importado da Califórnia, através de Hollywood, e que não tinha
nenhum conteúdo ideológico. Aquelas casas, escolas e aeroportos, decalcados de
figurinos como Mi Casita ...........................................
SSA: Caderno Cultural de A Tarde, de 16/02/2002