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Arquitetura Baiana: a contribuição regionalista

  • 16 de Fevereiro de 2002

A caracterização de uma arquitetura baiana tem sido objeto de alguma discussão recente na nossa Faculdade de Arquitetura da UFBA. Ano passado organizamos um curso de extensão na universidade, “Arquitetura Baiana Revisitada”, onde tentamos identificar com os alunos as principais tipologias arquitetônicas de Salvador. No início do presente ano, discutimos com outros professores a mesma questão na mesa-redonda “Arquitetura na Bahia, qual?” O tema foi novamente trazido à tona durante o “Seminário Internacional de Requalificação Urbana e Cultura da Cidade”, quando o professor italiano Angelo Bugatti perguntou aos presentes se havia uma tipologia de arquitetura tradicional no Pilar, objeto de estudo daquele seminário.
É evidente que existe, e não só no Pilar, como em toda mancha urbana ocupada até meados do século XX, como pode ser verificado no primeiro levantamento aerofotogramétrico de Salvador. A tipologia dominante das edificações ali registrada estava, como é natural, associada a uma determinada morfologia urbana, caracterizada por ruas corredores, que seguiam as cumeadas da primeira e segunda linhas de colinas do sítio de Salvador. Estava relacionada também com o modelo de parcelamento urbano, constituído por lotes com frentes estreitas, de 5,5 a 7,0 m, excepcionalmente 9,0 m, e grande profundidade dos lotes, podendo chegar a 35,0 m ou mais. Deixemos de parte os grandes monumentos.
A única variante àquela morfologia urbana encontrava-se na mancha matriz da cidade, de traçado geométrico renascentista, não linear. Ali, a par com a tipologia arquitetônica descrita, existiam casas nobres com pátios centrais, como o Palácio Arquiepiscopal e os solares Berquó e Saldanha, viabilizados por um parcelamento mais generoso, que os que se seguiriam. A partir da década de 1930, por interferência da Prefeitura, começam a surgir loteamentos de casinhas isoladas, que somados às primeiras invasões determinariam o aparecimento de novas tipologias arquitetônicas, ao tempo que as tradicionais cediam lugar a edifícios de apartamentos.
Os lotes estreitos e compridos referidos eram ocupados por casas ou sobrados estruturados por um corredor longitudinal que ligava a sala de visitas, debruçada sobre a rua, à sala de jantar, aberta para o quintal. Entre essas duas salas perfilavam-se as alcovas, sem iluminação, mas ventiladas pelo corredor-túnel. Nas casas mais simples, conhecidas como “meias moradas”, o corredor ficava em um dos lados. Nas “moradas inteiras”, mais largas e ricas, no centro. Essas construções não eram exclusivamente habitacionais. Nos sobrados residências, o térreo tinha função comercial ou de depósito. Havia também sobrados de função só comercial ou institucional, cuja tipologia não diferia muito dos primeiros.
A rigor essa tipologia não é exclusivamente baiana. O arquiteto Francês Louis Vauthier, que viveu no Recife entre 1840 e 1846, descrevia um desses sobrados e afirmava: “quem viu uma casa brasileira, viu quase todas”. Nós diríamos, inclusive, que ela não é só brasileira. Ela tem origem medieval e pode ser encontrada, com pequenas variações, na Península Ibérica e em outras regiões européias, como os Países Baixos. Na Espanha é conhecida como casa chorizo e na Itália, como casa schiera ou em fileira.

A partir do segundo quartel do século XIX, a casa tradicional começa a se afastar de umas das divisas do lote, já agora mais largo, formando uma passagem ou jardim lateral por onde se fazia o ingresso e chegava luz às alcovas, sem, contudo, modificar significativamente a planta do edifício. Por influência europeia, difundem-se nas cidades brasileiras, a partir de meados do século, viletas ecléticas burguesas, em meio a grandes lotes urbanos. De que foi exemplo, nesta cidade, o Corredor da Vitória e, mais tarde, em São Paulo, a Avenida Paulista.
Mas a invenção da arquitetura brasileira estava sendo feita na zona rural, nas casas–grandes e de trabalhadores assalariados dos engenhos. Sem as limitações dos lotes medievais, elas vão, pouco a pouco, libertando-se dos modelos europeus. As casas-grandes retratadas pelos pintores de Nassau, no Nordeste, ainda seguem o padrão português: depósito agrícola no térreo e residência elevada, com acesso por escada externa. Um balcão entalado, no primeiro andar, permitia algum desafogo visual. Contudo, o sistema construtivo já era outro: estrutura independente de madeira fechada por tabiques de pau-a-pique, em lugar dos tradicionais muros estruturais portugueses, de pedra, alvenaria mista ou adobe.
Embora a descrição testamentária da casa de Mem de Sá (século XVI), em São Francisco do Conde, insinue que se tratava de uma casa avarandada e térrea, a sede de engenho rodeada de varandas e colunas só começaria a difundir-se em meados do século XVIII, numa faixa litorânea, que ia do Recôncavo baiano ao Rio de Janeiro. Esta foi, como dissemos, uma criação original. Nossos construtores virariam literalmente a casa rural portuguesa pelo avesso, adequando-a, não só ao ambiente tropical, como à família patriarcal extensiva. As circulações em torno do pátio interior da casa portuguesa se transformariam em varandas periféricas no Brasil. De uma casa introspectiva, voltada para os pátios interiores, com pequenas aberturas para o exterior, passa-se a uma casa totalmente aberta, mas que se protege da chuva e do sol com largos beirais e varandas permeáveis as brisas. Ao invés da pesada e gris estrutura de pedra do Norte, ou de adobe, alvíssimo, do Sul de Portugal, surge uma estrutura independente de madeira, recoberta por enormes telhados que se prolongam em largas varandas, só possíveis pela abundância de madeira. Uma casa como uma árvore tropical, com uma enorme copa horizontal.
Alguns historiadores de arquitetura teimam em negar a originalidade dessa casa árvore, afirmando que seus elementos constitutivos já existiam na arquitetura lusa. Não percebem que há uma imensa diferença sócio-funcional e morfológica entre um balcão entalado e elevado da casa do Norte de Portugal e a varanda brasileira, situada ao nível do chão e concebida como transição ambiental e social entre o exterior liberado e quente e o interior excludente e sombrio da casa patriarcal. Esta transição estava presente também nas capelas alpendradas, este sim um elemento peninsular, mas reinterpretado aqui e rebatizado pelo índio como “copiar”.
Os arquitetos modernistas baianos retornam alguns desses elementos dentro de uma nova sintaxe formal. Grandes e altos telhados permitiriam interessantes jogos espaciais com pés-direitos duplos, mezaninos em balanço e águas furtadas que captam seletivamente a luz exterior. Painéis de vidro substituem os tabiques de pau-a-pique, deixando à mostra esteios estruturais, dando maior transferência e brilho à casa. As varandas passam a fazer a transição entre os jardins e os pátios ensolarados de piscina e o interior aconchegante e sombreado. Foi pioneiro dessa arquitetura Diógenes Rebouças, com as primeiras experiências em Itabuna e no Morro do Ipiranga, em Salvador, ainda na década de 1950. Essas experiências seriam enriquecidas e tornadas mais leves por seus alunos mais próximos, como Assis Reis, Paulo Ormindo, Gilberbet Chaves, Wilson Andrade, Firmo de Azevedo e Ivan Smarcevski, entre outros. A esses se somaram os foâneos Carl Von Hausenchild e Rui Cores.
Esta expressão regionalista, embora nascida na Bahia, se difundiria rapidamente em todo o Nordeste, dando origem a uma tipologia arquitetônica hoje de domínio comum. Querem alguns críticos classificar essa produção de neocolonial, por usar materiais tradicionais – telha e madeira – e burguesa, por descender da arquitetura dos barões do açúcar. Seus iniciadores não decalcaram nada, senão tomaram da autêntica arquitetura brasileira o que ela tinha de mais valioso, sua atitude ecológica. Incorporaram às suas obras elementos distributivos tropicais, como varandas-circulação e águas-furtadas, e materiais tradicionais, de insuperável eficiência térmica e permeabilidade, como as telhas árabes e treliças. Mas sempre associando-os a novas funções e significados.
Em segundo lugar, o neocolonial praticado no país, nas décadas de 1930 e 1940, não tinha nenhuma dessas características ecológicas. Tirado os pioneiros, como Ricardo Severo, José Mariano Filho e alguns arquitetos que buscavam raízes para a arquitetura brasileira dominada pelo ecletismo europeu, o neocolonial brasileiro se transformou em um modismo da classe média inspirado no chamado Mission Style importado da Califórnia, através de Hollywood, e que não tinha nenhum conteúdo ideológico. Aquelas casas, escolas e aeroportos, decalcados de figurinos como Mi Casita ...........................................


SSA: Caderno Cultural de A Tarde, de 16/02/2002


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