Artigos de Jornal
Um álbum de família especial
Ouviu-se um baque surdo e a velha camionete zig-zagueou, arrastou as rodas no
cascalho e finalmente parou sob uma nuvem de poeira atravessada e coxa em meio à
estrada deserta. Da Chevrolet saiam viajantes sonolentos e aturdidos sob a
soalheira calcinante. Só então pude conhecê-los sob a luz do dia, pois tínhamos
saído de Salvador de madrugada. Como um carona adolescente em férias, no último
banco do veiculo, não pude configurá-los nem me inteirar de suas conversas
travadas em um misto de português, francês e inglês, tendo como fundo um coro de
grilos ritmado pelo chocalhar do veículo.
Um senhor calvo, de olhos irrequietos e lentes grossas, logo desapareceu no
labirinto da caatinga em busca de fotos. Assim, precedido de detonação, nuvem de
poeira e tendo nas mãos flores e cardos, conheci esse mago da imagem, contido e
discreto, que foi Pierre Verger. Nunca mais tiraria os olhos de suas fotos
dispersas em livros de etnografia e em raros álbuns editados no exterior. Mais
tarde, nos anos 80, parte de sua produção baiana foi reunida em coletâneas, como
“Retratos da Bahia e 50 anos de fotografia”, editadas com capricho por Arlete
Soares, para a Corrupio.
Pouco a pouco descobri que estávamos em uma missão, ou melhor, aventura
cientifica como a dos viajantes do século XIX, de reconhecimento de um
território onde pudéssemos deixar outro viajante, Marvin Harris, um
norte-americano desengonçado, quase imberbe, que vinha desenvolver sua
dissertação de mestrado em antropologia dentro do convenio Estado da Bahia -
Columbia University imaginado por Anísio Teixeira e tendo como coordenadores os
professores Thales de Azevedo, da UFBa, meu pai, e Charles Wagley, da Columbia
University.
Verger ainda não tinha brevet de antropólogo, mas já era considerado o melhor
fotografo do universo étnico latino americano, razão pela qual havia sido
incorporado à comitiva, como um Rugendas, ou melhor, um Debret contemporâneo.
Ainda não se assinava Fatumbi, nem tinha sido iniciado como filho do segredo.
Enquanto meu pai, Harris e Josildete, sua assistente baiana, se reuniam com os
homens bons e autoridades de Rio de Contas para explicar o objetivo da missão e
escolherem uma casa para instalação de um escritório, Verger vagava pela cidade
retratando tipos humanos e costumes locais. Como já conhecia o discurso,
repetido a cada nova apresentação, me ofereci de voluntário para auxiliá-lo,
percorrendo becos e oficinas de artesãos que despertavam a cidade com o som
estridente de suas bigornas e o ronco dos foles de suas fráguas confeccionando
reluzentes punhais e ferragens de montarias. O fotógrafo a cada 12 chapas
rebobinava a película e lambia parcimoniosa a fita gomada de seu fecho, como uma
mãe lambe a sua cria, e o acomodava com anotações na maleta que eu carregava.
Com respostas monossilábicas, com forte acento gutural, começamos, pouco a
pouco, a nos entender e ele me explicava alguns macetes de sua profissão, sob a
inquisição de um adolescente curioso.
Deixamos os dois degredados e retornamos a Salvador com Verger disparando no que
se movia a sua frente, em todas as paradas para reabastecer e comer. Meses
depois o mesmo ritual foi repetido em Monte Santo, para instalação dos
estudantes Ben Zimermam e sua contraparte baiana pelo casamento, e São Francisco
do Conde, para instalação de Bill Hutchinson e sua assistente, uma matrona de
boa cepa baiana, repetindo a formula sugerida por Wagley e aceita por meu pai,
não sem restrições de minha mãe, melhor conhecedora da influencia dos trópicos
sobre as paixões humanas. Não pude acompanhar o grupo nessas outras missões,
pois começaram as aulas.
Verger, como se sabe, desiludido com a mesmice pequeno burguesa européia do
entre guerras, esperaria a morte do último membro da sua família, sua mãe, em
1932, para ganhar o mundo. Viajou pelas ilhas do Pacífico, fez a volta ao mundo
em navio, conheceu China e Japão. Em 1936, descobre e se entusiasma com África,
como outros artistas modernos, a exemplo de Gaudí, Mondigliani, Picasso e
Braque. Viaja, a seguir, para o Caribe, onde pode confrontar a cultura ioruba e
sua diáspora americana. Visitou ainda o México e os paises andinos, antes de
aportar na Bahia, em 1946. Na saliência do Nordeste que se descolou da África
criando o Golfo do Benin, deita raízes e tenta cerzir as duas partes rotas,
passando metade do tempo aqui e outra na Nigéria e no Benin.
Compara as imagens daqui e de lá, não as paisagens ou arquiteturas, mas o homem
em seus rituais e celebrações. Verger foi, desde o inicio de sua atividade, um
etnógrafo, o fotografo dos tipos humanos, da iniciação, dos ritos de vida e de
passagem. São retratos de crianças que brincam, velhos que meditam sobre a vida,
homens e mulheres que trabalham, que dançam e riem. Dessa comparação surge a
preocupação de compreender o porquê dessa semelhança e diversidade, que acabaria
sepultando o fotografo para fazer nascer o antropólogo.
Iniciado na fotografia por Marie Eisler e Pierre Bouche, Verger faz parte de uma
geração de famosos fotógrafos franceses, como: Henri Cartier-Bresson, Henri
Lartique, George Brassai, Robert Doisneau. Mas ao contrario de retratar grandes
personalidades, como fez magistralmente Henri Cartier- Bresson, e outros
contemporâneos, seu interesse é o homem comum. Forma assim uma galeria notável
de tipos raciais em todas as suas nuances: chineses, mongóis, hindus,
ameríndios, brancos, negros, cabras, mulatos, cabo-verdes, sararás, caboclos,
mamelucos, cholos, cafuzos e curibocas. Mas são os negros com a alma exposta nos
olhos, sem pecado original, com sua alegria de viver, que lhe cativam. Foi essa
capacidade de registrar tipos raciais paradigmáticos que o aproximou de grandes
antropólogos interessados em ilustrar seus livros, como Alfred Metraux, Roger
Bastide e Melville Herskovits. Thales de Azevedo também teve um de seus livros
ilustrados por Verger, “Les élites de couleur dans une ville Brésilienne”,
editato pela UNESCO, quando Metraux dirigia um de seus departamentos.
Quando nos encontrávamos, voltávamos inconscientemente àquela viagem e aos
episódios que se seguiram. Harris concluiu sua dissertação e a publicou sob o
título “Town and Country in Brazil”, merecendo comentários de Fernand Braudel.
Zimerman teve que retornar apressadamente para os Estados Unidos, porque se
envolveu com sua assistente casada, o que resultou em uma quase tragédia, com
lavagem de honra pelo marido traído e subseqüente reconciliação. Bill retornou
com sua auxiliar para os States, publicou sua tese, enquanto vivia as doçuras do
incesto, pois sua companheira substituiu a mãe morta precocemente. Depois de sua
segunda orfandade, assumiu finalmente sua verdadeira vocação.
O reconhecimento de Verger, de que... negligenciei freqüentemente o lado
estético em prol da espontaneidade das expressões e das cenas a captar..., que
reflete o dilema do verdadeiro fotógrafo de conciliar a construção do quadro com
o registro do instante, que não se repetirá, tem sido interpretado erroneamente
como um descompromisso com a forma. Não é verdade. Suas fotos têm um
enquadramento e um movimento perfeito, ainda que pouco convencional. Usava com
enorme maestria os filtros amarelo e laranja para obter a gama desejada de
grises e, em alguns casos, efeitos dramáticos de um céu de anil onde flutuavam
fofas nuvens tropicais. O realismo dos cromos e fotos coloridas nunca lhe
seduziu, senão os efeitos da luz e da sombra, o chiaro ed oscuro dos filmes
preto e branco.
As fotos tomadas de baixo para cima, uma de suas marcas, resultavam de uma
técnica apurada de enquadrar o modelo com a câmara na cintura, enquanto
conversava, olho no olho, aguardando um brilho de expressão para disparar o
obturador. É com essa técnica que ele elabora um de seus melhores auto-retratos
diante de um espelho, com a mesma sutileza com que Velásquez o faz em As
meninas. Essa discrição no fotografar lhe valeu fotos de uma espontaneidade
rara, em que os fotografados não percebem a presença do voyeur. Verger não
produziu apenas documentos, senão instantâneos imorredouros que são obras de
arte. Embora pouco difundido, ele é, sem dúvida, um dos maiores fotógrafos do
mundo.
Essa dívida com o artista e etnógrafo começa a ser resgatada pela fundação que
leva seu nome, depositária de um inestimável acervo de 62.000 fotos universais,
com uma exposição itinerante que não fica a dever a nenhuma grande exposição
européia ou norte americana, e com a publicação de “O olhar viajante de Pierre
Fatumbi Verger” . Nelas vem à luz um Verger pouco conhecido, o fotografo
andarilho do mundo, sem filosofia nem literatura, possuído apenas pela urgência
de documentar, em toda a sua grandeza e beleza, culturas que estavam condenadas
a ser esmagadas, mais cedo ou mais tarde, pela avalanche daquela civilização
ocidental tediosa e castrante da qual ele fugia. Só depois de cumprir essa
missão, ele passaria a refletir e escrever sobre tudo que testemunhou e
participou.
Em suas andanças, Verger vai criando uma nova família, a Família do Homem, nome
de memorável exposição de 1955, organizada por Edward Steinch, com introdução de
Carl Sandburg, no MoMa de Nova Iorque, na qual ele debuta em salão
internacional, junto a outros eminentes fotógrafos contemporâneos . A exposição
e o livro exibem apenas um por cento dessa coleção magistral, mas é o suficiente
para mostrar a humanidade em toda a sua grandeza, diversidade e beleza, não
obstante a pobreza da maioria de seus membros. Este é o legado que Verger reuniu
durante 50 anos e nos deixou, o Álbum da Família do Homem.
SSA: A Tarde, ....2003
1-Paris: UNESCO, 1953.
2-Salvador: Odebrecht, 2002.
3-The Family of Man. New York: Museum of Modern Art, 1955.