Artigos de Jornal


Vitória: preservar ou tombar?

  • 16 de Julho de 2004

A gritaria desencontrada que se estabeleceu sobre o tombamento da Vitória demonstra uma enorme desinformação da sociedade sobre a questão. Os pivôs dessa crise são dois. Primeiro a falta de qualquer diretriz de desenvolvimento urbano em Salvador, nas últimas três décadas, e a exclusão da sociedade civil em seus processos de gestão, de que é prova o polêmico PDDU 2002. Na falta desse diálogo, o tombamento passou a ser, para alguns, a solução de todos os problemas: balaustrada do Porto da Barra, feira de São Joaquim, condomínios no Bairro da Luz, má qualidade do acarajé etc. Delega-se, assim, à “coroa provedora” decisões que deveriam ser cidadãs. É nesse contexto que se propôs, em 1999, tombar nacionalmente os bairros da Graça, Vitória e Canela e isoladamente 12 imóveis compreendidos nos mesmos.
Segundo, a insuficiência do nosso quase septuagenário Dec – lei nº 25/37 quando aplicado a conjuntos e centros históricos vivos, com sua dinâmica e problemas. Recorde-se que esta lei foi feita para preservar monumentos excepcionais, sítios arqueológicos e bens móveis. Como o tombamento é um instrumento passivo de preservação, as requalificações de centros históricos no país têm sido feitas prioritariamente pelos governos estaduais ou municipais, ante a proverbial falta de recursos do Iphan. Ora a recomendação do Conselho Consultivo à Diretoria do Iphan de cobrar um compromisso do Estado e da prefeitura na preservação do Corredor da Vitória é perfeitamente coerente com a realidade e com o principal avanço da legislação patrimonial, o princípio da responsabilidade solidária dos três poderes na preservação dos bens culturais e naturais, art.23 da Constituição de 88. Este dispositivo é tanto mais aplicável ao nosso caso já que a quase totalidade dos bens que se pretende tombar é pública: Largo e Corredor da Vitória, Campo Grande, Passeio Público do Aclamação, Museu do Estado, Igreja da Vitória. Acrescente-se a isso o fato de a área se superpor com perímetros municipais especiais: área de bordo e integrante do sistema de áreas verdes, ainda que só parcialmente observadas.
Após quatro versões pouco consensuais, a proposta original de tombamento foi reduzida a apenas quatro logradouros públicos e cinco monumentos, três dos quais públicos e um quarto pertencente a uma associação cultural italiana. No balanço geral se estaria tombando uma única casa privada. No resto do bairro não iria mudar absolutamente nada, já que a última proposta do conselheiro Sabino Barroso não entra em choque com a prática seguida pelo mercado imobiliário, há pelo menos 20 anos, qual seja, conservar a “configuração arquitetônica externa” das mansões, usualmente transformadas em salões de festas e construção de torres no fundo sem limite de altura. Neste sentido é preferível que a Sucom institucionalize a prática vigente, e não o Iphan, pois estes dois dispositivos minariam os pilares básicos do conceito de monumento, integridade, autenticidade e ambiência, pondo o Iphan em situação embaraçosa com respeito a suas atribuições legais. Defendi, desde o início a negociação do Iphan com as instituições e a sociedade local visando à construção de uma instância de decisão preservacionista compartida, para contrabalançar o peso dos lobbies imobiliários. Esta negociação deveria ter sido feita durante a vigência do tombamento provisório e não agora, quando o Iphan perdeu seu único instrumento de pressão.
Se quisermos preservar a Vitória, além de resgatar os casarões remanescentes, temos que reduzir o gabarito aos níveis anteriores ao Transcom, reflorestar a encosta e controlar o uso do solo em benefício de toda comunidade. O tombamento, com as limitações que possui, não tem poder para tanto e, mais que preservar valores culturais pretensamente nacionais, poderá indiretamente reforçar privilégios ali acastelados. Precisamos de um novo modelo de desenvolvimento urbano que não seja nem o autofágico do capital imobiliário, nem o “retrô”, dos que desejam engessar toda a cidade. Um modelo de desenvolvimento participativo que inclua o patrimônio cultural e natural como fator de desenvolvimento humano. Isto só se faz somando forças.

SSA; A Tarde,


Últimos Artigos