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Thales de Azevedo: pintor bissexto
“...arredio do soçaite, esporádico pintor dos domingos e poeta bissexto
quase inédito.” (Thales de Azevedo)
Quando comecei a me entender, ele já havia enfiado suas ferramentas médicas em
um baú e o enterrado no subsolo da casa da Barra Avenida. Além do porão e da
roça, povoados de monstros, piratas e ladrões na nossa imaginação, a casa tinha
um outro território proibido, esse de magia, o gabinete de meu pai, onde as
crianças só podiam entrar sob os olhares vigilantes dos adultos, para não
alterarem a ordenação amorfa, mas precisa, de papéis, desenhos, livros,
engenhocas e novidades tecnologias aplicáveis a seu trabalho, desde câmaras de
fole e gravadores de arame até lançamentos recentes, como uma Xerox de bolso e
um processador de texto. Os documentos mais importantes e os objetos de
estimação eram guardados em um armário com portas de vidro. A coleção incluía
desde uma pequena torá, passando por medalhas e condecorações, até um estojo de
pintura e uma delicada boneca japonesa de seda, que dormia imperturbável
qualquer que fosse a posição em que caísse. Meu pai, quando nos surpreendia
bisbilhotando a pandora, nos afastava carinhosamente revivendo o médico:
desinfeta, desinfeta!
Mas a vida não era só trabalho. Havia também viagens longas ao exterior e
férias, na fazenda do tio Carlos, em Igreja Nova, Alagoinhas, ou no sítio da Boa
União, e na praia, em Itaparica, Madre de Deus, Itapagipe e Jauá. Dentre a
numerosa bagagem preparada, nessas ocasiões por minha mãe ele só tinha olhos
para a sua sacola com revistas, alguns livros, o chapéu panamá e o vistoso
estojo de pintura. Uma vez instalado, meu pai esquecia os compromissos
universitários e dedicava-se a outras atividades, entre as quais o desenho, a
pintura e longas prosas com os locais. Voltava com a bagagem aumentada de
delicadas paisagens ou marinhas, embora nunca tivesse freqüentado um ateliê,
alguma poesia de fino humor e um caderno de pertinazes anotações.
Mas o que surpreende, mesmo em sua condição de pintor bissexto, é a quantidade e
qualidade de sua pintura. São mais de 60 obras, entre sketchs, marinhas,
paisagens, naturezas-mortas e retratos. Quem imaginava encontrar um pintor naif,
ingênuo, desses cujos quadros são uma colagem divertida de detalhes, se
surpreende com um artista unitário, que domina várias técnicas, a perspectiva, o
chiaro-oscuro, a escala cromática e capta o “tchan” de seus retratados. Thales
de Azevedo é um pintor figurativo que não se filiou a nenhum modismo. Recriou
marinhas e paisagens a seu modo, nos transmitindo uma tranqüilidade momentânea,
que logo se transforma em nostalgia de um tempo sem retorno.
Desinteressado por qualquer parcela de poder ou recompensa material, lúcido e
atento, rigoroso consigo próprio e generoso com os outros, ele conquistou o
respeito e a veneração da Bahia e do país. Thales de Azevedo, meu pai, um
espírito acima de qualquer vicissitude humana, brilhante e discreto, fruiu, como
disse o poeta maior da paixão Godofredo Filho, o espanto e o orgulho de ser
anjo, sendo homem.
A Tarde – 28/08/2004.