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Thales de Azevedo: pintor bissexto

  • 28 de Agosto de 2004

 “...arredio do soçaite, esporádico pintor dos domingos e poeta bissexto quase inédito.” (Thales de Azevedo)

Quando comecei a me entender, ele já havia enfiado suas ferramentas médicas em um baú e o enterrado no subsolo da casa da Barra Avenida. Além do porão e da roça, povoados de monstros, piratas e ladrões na nossa imaginação, a casa tinha um outro território proibido, esse de magia, o gabinete de meu pai, onde as crianças só podiam entrar sob os olhares vigilantes dos adultos, para não alterarem a ordenação amorfa, mas precisa, de papéis, desenhos, livros, engenhocas e novidades tecnologias aplicáveis a seu trabalho, desde câmaras de fole e gravadores de arame até lançamentos recentes, como uma Xerox de bolso e um processador de texto. Os documentos mais importantes e os objetos de estimação eram guardados em um armário com portas de vidro. A coleção incluía desde uma pequena torá, passando por medalhas e condecorações, até um estojo de pintura e uma delicada boneca japonesa de seda, que dormia imperturbável qualquer que fosse a posição em que caísse. Meu pai, quando nos surpreendia bisbilhotando a pandora, nos afastava carinhosamente revivendo o médico: desinfeta, desinfeta!
Mas a vida não era só trabalho. Havia também viagens longas ao exterior e férias, na fazenda do tio Carlos, em Igreja Nova, Alagoinhas, ou no sítio da Boa União, e na praia, em Itaparica, Madre de Deus, Itapagipe e Jauá. Dentre a numerosa bagagem preparada, nessas ocasiões por minha mãe ele só tinha olhos para a sua sacola com revistas, alguns livros, o chapéu panamá e o vistoso estojo de pintura. Uma vez instalado, meu pai esquecia os compromissos universitários e dedicava-se a outras atividades, entre as quais o desenho, a pintura e longas prosas com os locais. Voltava com a bagagem aumentada de delicadas paisagens ou marinhas, embora nunca tivesse freqüentado um ateliê, alguma poesia de fino humor e um caderno de pertinazes anotações.
Mas o que surpreende, mesmo em sua condição de pintor bissexto, é a quantidade e qualidade de sua pintura. São mais de 60 obras, entre sketchs, marinhas, paisagens, naturezas-mortas e retratos. Quem imaginava encontrar um pintor naif, ingênuo, desses cujos quadros são uma colagem divertida de detalhes, se surpreende com um artista unitário, que domina várias técnicas, a perspectiva, o chiaro-oscuro, a escala cromática e capta o “tchan” de seus retratados. Thales de Azevedo é um pintor figurativo que não se filiou a nenhum modismo. Recriou marinhas e paisagens a seu modo, nos transmitindo uma tranqüilidade momentânea, que logo se transforma em nostalgia de um tempo sem retorno.
Desinteressado por qualquer parcela de poder ou recompensa material, lúcido e atento, rigoroso consigo próprio e generoso com os outros, ele conquistou o respeito e a veneração da Bahia e do país. Thales de Azevedo, meu pai, um espírito acima de qualquer vicissitude humana, brilhante e discreto, fruiu, como disse o poeta maior da paixão Godofredo Filho, o espanto e o orgulho de ser anjo, sendo homem.

A Tarde – 28/08/2004.


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