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Revisitando Dr. Lúcio

  • 06 de Novembro de 2004

Os paulistas se orgulham de terem sido os arautos da renovação das artes
brasileiras durante a Semana de Arte Moderna de 1922, com as intervenções de Oswald e Mário de Andrade, na literatura, e Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, que se encontrava em Paris, na pintura. A participação de arquitetos na Semana de 22 foi praticamente nula. Mas isto não afetou o futuro da arquitetura no país. A Semana não tinha propostas concretas e teve mais o papel de desconstruir as práticas vigentes, que criar um movimento artístico novo. Muitos artistas plásticos formados na Europa como Victor Brecheret, Laser Segall e Di Cavalcanti já faziam pintura modernista.
A nova literatura e a arquitetura brasileiras iriam desabrochar na década de 1930, respectivamente no Nordeste, com o romance regionalista, e no Rio de Janeiro, com um grupo de jovens arquitetos liderados por Lúcio Costa, sem relação direta com os intelectuais da Semana de 22. A nova arquitetura resultou não só das transformações por que passava a sociedade brasileira, sentida na arquitetura mais que em qualquer outra arte, como da tomada de consciência do beco-sem-saída que era o Neocolonialismo em moda, do qual Lúcio Costa fora um dos principais protagonistas.
A nova arquitetura nasceu como um movimento estruturado, com etapas bem definidas: reforma do ensino da profissão, conservação em vez da cópia do colonial, demonstração da viabilidade de uma nova arquitetura no país e a realização de grandes urbanizações, sob o patrocínio do estado. Em todos estes episódios, balizadores da trajetória da arquitetura moderna brasileira, a presença de Lúcio Costa foi decisiva.

Na reforma do ensino, Lúcio foi o principal ator, como diretor da Escola Nacional de Belas Artes, entre 1930 e 1931. Se não conseguiu implantar todas as reformas pretendidas, contratou novos professores e despertou os alunos para a nova arquitetura. Dali saíram os profissionais que fariam a revolução da arquitetura brasileira, como Luís Nunes, no Recife, Oscar Niemeyer e os irmãos Roberto, no Rio de Janeiro, e o professor Alexandre Budeus, autor do Instituto do Cacau e provavelmente da Escola Normal, atual ICEIA, na Bahia. Convocado por Rodrigo Melo Franco de Andrade, Lúcio foi um dos fundadores do IPHAN e um dos esteios na sua fase inicial, sepultando de vez o pastiche neocolonial e criando as bases para a preservação dos nossos monumentos e cidades históricas.
É bem conhecido o episódio da construção da sede do Ministério de Educação e Saúde, no Rio de Janeiro. Convidado por Gustavo Capanema para projetar a nova sede ministerial, depois de um concurso frustrado, Lúcio Costa rejeita a oferta e sugere a formação de uma equipe de jovens arquitetos modernistas, sob a coordenação de Le Corbusier para equacionar a questão. O caprichoso mestre francês, não sendo acatado na sua reivindicação de mudanças de local do edifício, abandonaria a equipe e Lúcio Costa assumiria a coordenação do primeiro edifício construído segundo os cinco pontos apontados como característicos da Arquitetura Moderna, apontados pelo mesmo Le Corbusier. Finalmente, com a decisão de Juscelino Kubischeck de construir a nova capital, depois da experiência da Pampulha, em Belo Horizonte, Lúcio se inscreve e vence o concurso do Plano Piloto de Brasília, a maior e mais bem-sucedida experiência urbanística modernista mundial.
O homem cordial e desinteressado, que todos recordam como um vovô de bigodes longos atrás de um pince-nez, foi na verdade um lutador. Seu mandato na Escola de Belas Artes terminou com uma greve geral de estudantes em protesto por sua renúncia forçada. Sua ruptura com o Neocolonialismo valeu-lhe a acusação de oportunista, comunista e entreguista pelo ultraconservador José Mariano Filho, papa do movimento.
Le Corbusier, depois de rejeitar o anteprojeto elaborado pela equipe brasileira, ao ouvir as loas do MoMA em uma exposição e livro lançado em Nova Iorque ao edifício semiacabado, resolve voltar atrás e reivindicar direitos-autorais do mesmo, naturalmente negados. O plano-piloto para Brasília, apresentado em duas folhas de papel Canson desenhadas a carvão com um memorial manuscrito, em contraste com as numerosas pranchas desenhadas caprichosamente a nankin e aquarela, com tabelas, planilhas de custos de outros concorrentes, provocou a ira do representante do Instituto de Arquitetos do Brasil, que via na sua premiação uma retribuição do presidente da Comissão Julgadora, Oscar Niemeyer, ao antigo mestre. A todos Dr. Lúcio respondia com elegância e imperturbável firmeza.
O presente lançamento da Cosac-Naify reúne 31 comunicações e depoimentos ao seminário internacional “Um Século de Lúcio Costa”, realizado no Rio de Janeiro, entre 13 e 17 de maio de 2002, por iniciativa da PUC-Rio, do Instituto Artes do Brasil, da UFRJ e da Casa de Lúcio Costa, sobre a obra e personalidade do arquiteto, urbanista e ensaísta de arte, nascido por acaso em Paris. As comunicações reunidas no livro são a primeira tentativa de análise multidisciplinar da obra do arquiteto.
Até a publicação de “Um Modo de ser Moderno: Lúcio Costa e a Crítica Contemporânea”, a bibliografia sobre Lúcio Costa se resumia a coletâneas de seus escritos e entrevistas, referências a sua atuação em livros sobre a histórias da arquitetura brasileira e análises pontuais de sua obra. Os ensaios agora publicados, embora estejam longe de esgotarem o assunto, abrem a perspectiva de uma contextualização da obra do arquiteto dentro do contraditório processo de modernização, sem mudança, da sociedade brasileira, durante o século XX.
Infelizmente o seminário ficou restrito a especialistas do Rio e São Paulo e alguns estrangeiros. Fora desse eixo, apenas a participação de Carlos Eduardo Comas da UFRGS e Elson Pereira da UFSC. Nenhum arquiteto residente em Brasília e em outros estados. Uma pena que ninguém da Bahia tenha sido convidado, onde Dr. Lúcio fez os primeiros riscos dos Centro Administrativo da Bahia, da urbanização dos Alagados e do Loteamento Patamares, todos modificados em sua realização, em flagrante desrespeito aos direitos-autorais do grande mestre da arquitetura brasileira.

Caderno Cultural de A Tarde, de 06/11/2004.


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