Artigos de Jornal
Revisitando Dr. Lúcio
Os paulistas se orgulham de terem sido os arautos da renovação das artes
brasileiras durante a Semana de Arte Moderna de 1922, com as intervenções de
Oswald e Mário de Andrade, na literatura, e Anita Malfatti e Tarsila do Amaral,
que se encontrava em Paris, na pintura. A participação de arquitetos na Semana
de 22 foi praticamente nula. Mas isto não afetou o futuro da arquitetura no
país. A Semana não tinha propostas concretas e teve mais o papel de desconstruir
as práticas vigentes, que criar um movimento artístico novo. Muitos artistas
plásticos formados na Europa como Victor Brecheret, Laser Segall e Di Cavalcanti
já faziam pintura modernista.
A nova literatura e a arquitetura brasileiras iriam desabrochar na década de
1930, respectivamente no Nordeste, com o romance regionalista, e no Rio de
Janeiro, com um grupo de jovens arquitetos liderados por Lúcio Costa, sem
relação direta com os intelectuais da Semana de 22. A nova arquitetura resultou
não só das transformações por que passava a sociedade brasileira, sentida na
arquitetura mais que em qualquer outra arte, como da tomada de consciência do
beco-sem-saída que era o Neocolonialismo em moda, do qual Lúcio Costa fora um
dos principais protagonistas.
A nova arquitetura nasceu como um movimento estruturado, com etapas bem
definidas: reforma do ensino da profissão, conservação em vez da cópia do
colonial, demonstração da viabilidade de uma nova arquitetura no país e a
realização de grandes urbanizações, sob o patrocínio do estado. Em todos estes
episódios, balizadores da trajetória da arquitetura moderna brasileira, a
presença de Lúcio Costa foi decisiva.
Na reforma do ensino, Lúcio foi o principal ator, como diretor da Escola
Nacional de Belas Artes, entre 1930 e 1931. Se não conseguiu implantar todas as
reformas pretendidas, contratou novos professores e despertou os alunos para a
nova arquitetura. Dali saíram os profissionais que fariam a revolução da
arquitetura brasileira, como Luís Nunes, no Recife, Oscar Niemeyer e os irmãos
Roberto, no Rio de Janeiro, e o professor Alexandre Budeus, autor do Instituto
do Cacau e provavelmente da Escola Normal, atual ICEIA, na Bahia. Convocado por
Rodrigo Melo Franco de Andrade, Lúcio foi um dos fundadores do IPHAN e um dos
esteios na sua fase inicial, sepultando de vez o pastiche neocolonial e criando
as bases para a preservação dos nossos monumentos e cidades históricas.
É bem conhecido o episódio da construção da sede do Ministério de Educação e
Saúde, no Rio de Janeiro. Convidado por Gustavo Capanema para projetar a nova
sede ministerial, depois de um concurso frustrado, Lúcio Costa rejeita a oferta
e sugere a formação de uma equipe de jovens arquitetos modernistas, sob a
coordenação de Le Corbusier para equacionar a questão. O caprichoso mestre
francês, não sendo acatado na sua reivindicação de mudanças de local do
edifício, abandonaria a equipe e Lúcio Costa assumiria a coordenação do primeiro
edifício construído segundo os cinco pontos apontados como característicos da
Arquitetura Moderna, apontados pelo mesmo Le Corbusier. Finalmente, com a
decisão de Juscelino Kubischeck de construir a nova capital, depois da
experiência da Pampulha, em Belo Horizonte, Lúcio se inscreve e vence o concurso
do Plano Piloto de Brasília, a maior e mais bem-sucedida experiência urbanística
modernista mundial.
O homem cordial e desinteressado, que todos recordam como um vovô de bigodes
longos atrás de um pince-nez, foi na verdade um lutador. Seu mandato na Escola
de Belas Artes terminou com uma greve geral de estudantes em protesto por sua
renúncia forçada. Sua ruptura com o Neocolonialismo valeu-lhe a acusação de
oportunista, comunista e entreguista pelo ultraconservador José Mariano Filho,
papa do movimento.
Le Corbusier, depois de rejeitar o anteprojeto elaborado pela equipe brasileira,
ao ouvir as loas do MoMA em uma exposição e livro lançado em Nova Iorque ao
edifício semiacabado, resolve voltar atrás e reivindicar direitos-autorais do
mesmo, naturalmente negados. O plano-piloto para Brasília, apresentado em duas
folhas de papel Canson desenhadas a carvão com um memorial manuscrito, em
contraste com as numerosas pranchas desenhadas caprichosamente a nankin e
aquarela, com tabelas, planilhas de custos de outros concorrentes, provocou a
ira do representante do Instituto de Arquitetos do Brasil, que via na sua
premiação uma retribuição do presidente da Comissão Julgadora, Oscar Niemeyer,
ao antigo mestre. A todos Dr. Lúcio respondia com elegância e imperturbável
firmeza.
O presente lançamento da Cosac-Naify reúne 31 comunicações e depoimentos ao
seminário internacional “Um Século de Lúcio Costa”, realizado no Rio de Janeiro,
entre 13 e 17 de maio de 2002, por iniciativa da PUC-Rio, do Instituto Artes do
Brasil, da UFRJ e da Casa de Lúcio Costa, sobre a obra e personalidade do
arquiteto, urbanista e ensaísta de arte, nascido por acaso em Paris. As
comunicações reunidas no livro são a primeira tentativa de análise
multidisciplinar da obra do arquiteto.
Até a publicação de “Um Modo de ser Moderno: Lúcio Costa e a Crítica
Contemporânea”, a bibliografia sobre Lúcio Costa se resumia a coletâneas de seus
escritos e entrevistas, referências a sua atuação em livros sobre a histórias da
arquitetura brasileira e análises pontuais de sua obra. Os ensaios agora
publicados, embora estejam longe de esgotarem o assunto, abrem a perspectiva de
uma contextualização da obra do arquiteto dentro do contraditório processo de
modernização, sem mudança, da sociedade brasileira, durante o século XX.
Infelizmente o seminário ficou restrito a especialistas do Rio e São Paulo e
alguns estrangeiros. Fora desse eixo, apenas a participação de Carlos Eduardo
Comas da UFRGS e Elson Pereira da UFSC. Nenhum arquiteto residente em Brasília e
em outros estados. Uma pena que ninguém da Bahia tenha sido convidado, onde Dr.
Lúcio fez os primeiros riscos dos Centro Administrativo da Bahia, da urbanização
dos Alagados e do Loteamento Patamares, todos modificados em sua realização, em
flagrante desrespeito aos direitos-autorais do grande mestre da arquitetura
brasileira.
Caderno Cultural de A Tarde, de 06/11/2004.